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Lei de combate
aos falsos recibos verdes:
um balanço para avançar
Em pouco tempo e apesar das suas limitações, esta lei atingiu resultados inéditos: a impunidade foi finalmente desafiada, a actividade inspectiva tornou-se mais eficaz e foram regularizadas mais de mil situações de falso recibo verde.
A lei de combate aos falsos recibos verdes, aprovada na sequência da
iniciativa legislativa cidadã que se bateu por uma "Lei Contra a
Precariedade", constitui uma inovação jurídica para actuar numa
realidade que se impôs de forma brutal. Apesar do texto final ter
resultado de um trabalho de especialidade em comissão parlamentar,
depois aprovado por unanimidade, esta lei foi uma conquista do
movimento. Um avanço que permitiu, pela primeira vez, desafiar a rotina
da ilegalidade e apontar um caminho possível para enfrentar o off-shore
laboral em que se transformou o recurso ao falso trabalho independente.
Mais
de dois anos passados, importa fazer um balanço da sua aplicação,
avaliar os resultados e apontar caminhos. Um debate importante, para o
qual é útil conhecer posições e argumentos, em particular num momento em
que existe um compromisso político para alterar esta legislação e foram
já entregues no parlamento propostas nesse sentido.
Antes de
mais, o que mudou com esta legislação? A Lei 63/2013 centra-se no
objectivo de regularizar as situações de falso recibo verde. Ou seja,
garantir o direito ao contrato de trabalho ilegalmente negado ao
trabalhador, procurando manter essa relação laboral. Trata-se de um
objectivo difícil, dado o contexto de extraordinária fragilidade em que
se encontra quem trabalha a falsos recibos verdes, nomeadamente devido à
chantagem do despedimento. A lei prevê, assim, a combinação de dois
tipos de mecanismos: uma maior eficácia na acção da Autoridade para as
Condições do Trabalho (ACT), que, quando detecta estas situações, pode
agora notificar a empresa incumpridora para celebrar o contrato de
trabalho em falta; e, em caso de recusa em regularizar a situação de
imediato, dá-se o encaminhamento automático para a via judicial, por
iniciativa do Ministério Público, num processo urgente que visa o
reconhecimento da relação laboral.
A originalidade desta solução
deve-se ao facto de ter nascido da mobilização e da experiência concreta
da luta contra a precariedade, procurando actuar onde importa:
converter a precariedade em trabalho com direitos, libertando o
trabalhador de tomar a iniciativa num processo de regularização que,
dessa forma, só poderia custar-lhe o seu trabalho. Antes desta lei, os
poucos casos em que trabalhadores tentaram ver reconhecidos os seus
direitos em tribunal correspondiam a situações em que já tinham perdido o
trabalho.
Em pouco tempo e apesar das suas limitações, esta lei
atingiu resultados inéditos: a impunidade foi finalmente desafiada, a
actividade inspectiva tornou-se mais eficaz e, concretamente, foram
regularizadas mais de mil situações de falso recibo verde, a maioria das
quais sem ser necessário avançar para tribunal. Um cenário impossível
sem os mecanismos agora em vigor.
Julgar os novos mecanismos
inaugurados pela Lei 63/2013 implica, portanto, uma posição sobre esta
questão essencial: deveríamos ter deixado tudo como sempre foi,
desistindo de tentar a regularização efectiva das situações de falso
recibo verde, procurando que o trabalhador aceda ao vínculo a que tem
direito e deixando apenas a possibilidade de reclamar créditos laborais
quando já ficou sem trabalho? Ou devemos, por outro lado, melhorar e
aprofundar a via da regularização, tornando-a mais eficaz e, desta
forma, desincentivar também as práticas ilegais das empresas?
Esta
mudança tem suscitado um debate vivo. Sem surpresa, despertou forte
oposição entre os patrões habituados à impunidade, como o comprovam os
sucessivos pedidos de inconstitucionalidade, sempre recusados pelo
Tribunal Constitucional. Há também quem, entre os agentes de justiça,
tenha levantado dúvidas – “perplexidades”, como anunciava um recente
colóquio do Supremo Tribunal de Justiça sobre o tema –, até porque a
aplicação destes mecanismos não foi, não poderia ser, isenta de
dificuldades. Mas muitas têm sido as vozes que, no terreno, têm
sublinhado a importância desta legislação, identificando as suas
limitações e defendido a necessidade de a aprofundar. Basta constatar,
além da actuação das entidades com competência na matéria, os diversos
posicionamentos no sector da justiça, de agentes do Ministério Público
ou por parte dos responsáveis da ACT.
A Associação de Combate à
Precariedade empenhou-se na mobilização por esta mudança e, dois anos
após a sua aplicação, confirma a importância do caminho iniciado com a
Lei 63/2013. No entanto, é necessário fazer correcções em vários
aspectos. É, sem dúvida, possível e urgente fazer muito mais.
Desde
logo, é necessário melhorar no que é essencial: conferir uma maior
protecção ao trabalhador, que continua vulnerável à chantagem do
despedimento durante o processo de regularização. Defendemos, como é
também opinião do Inspector-Geral do Trabalho, que a ACT deve ter
competências reforçadas para assegurar essa protecção logo que a
situação é detectada, impedindo retaliações até que a regularização
esteja concluída.
Por outro lado, nos casos em que as situações
seguem para tribunal, é preciso garantir que a acção é inequivocamente
guiada pelo interesse público e que, também aqui, se protege o
trabalhador do assédio patronal. Nenhum suposto “acordo” pode permitir
que se aceite, em pleno tribunal, uma situação potencialmente ilegal. Em
coerência com esta orientação, além da clarificação do papel essencial
do Ministério Público, deve impedir-se que a desigualdade seja um trunfo
em audiência, nomeadamente eliminando a existência da “conciliação” ou a
chamada do trabalhador como testemunha.
Estas alterações são hoje
uma possibilidade real. O acordo que viabilizou o actual ciclo político
assumiu o compromisso com esta necessidade, confirmado no programa do
Governo. Uma audição recente no parlamento juntou especialistas,
activistas e responsáveis institucionais, incluindo o ministro Vieira da
Silva, tendo originado já a entrega de iniciativas legislativas que,
entre outras alterações, prevê medidas que respondem às preocupações
atrás identificadas. Espera-se que o debate produza a necessária
concretização. Estamos perante um progresso verdadeiramente histórico,
que nos mostra que vale a pena lutar e a mobilização pode conseguir
resultados.
Em suma, a aplicação desta legislação provou que era
necessário vencer décadas de inacção e conservadorismo. Dado o primeiro
passo, é agora necessário avançar com coragem para garantir a devida
protecção às vítimas dos falsos recibos verdes. Enfrentamos uma das mais
eficazes estratégias de sobre-exploração nas últimas décadas, que
banalizaram a total desprotecção e uma bitola ameaçadora para o conjunto
da classe trabalhadora. Inverter esta realidade será duro e demorado,
numa batalha que ultrapassa em muito os instrumentos legais. Mas ignorar
esta dimensão ou, pior ainda, retroceder em vez de avançar neste
caminho, seria simplesmente desistir.
Representante da ILC “Lei Contra a Precariedade” e membro da Ass. de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis
IN "PÚBLICO"
15/02/16
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