17/07/2016

RUI ZINK

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A cor do crime

A América tem um problema para resolver e não o vai resolver. De rajada, dois jovens negros são mortos. Por polícias que não são negros. Pessoalmente, não acredito na teoria do racismo. Digo, do racismo bruto e óbvio. Acredito mais no medo. Os polícias serão (é a minha opinião) homens bons que, quando veem um negro, ficam cheios de medo. O medo é até certo ponto uma coisa normal. Um polícia é alguém que, por vocação, por profissão, arrisca ter a sua imaginação canalizada para a violência. Um polícia de giro imagina sempre: "E se? E se eu for atacado de repente, como vou reagir? Cobarde ou herói, vivo ou morto?" Polícia algum quer ser assassino. Um polícia normal quer, quando muito, ser herói: ajudar as pessoas, representar a lei e a ordem. Chegar ao fim do dia vivo, são e salvo, e mantendo os outros vivos, sãos e salvos. A maior parte do tempo isso acontece. Mas, quando vê um negro, por uma razão qualquer, um número demasiado grande de agentes da polícia ficam subitamente mais nervosos do que se tivessem encontrado uma mala sem dono numa estação. Não, não é racismo. Ou seja, não é racismo consciente. Maldoso, mal-intencionado, fruto de uma decisão de consciência e monstruosa por parte do agente da lei. Acredito piamente que, se perguntarem a estes agentes se são racistas, eles responderão não. E passariam (a maior parte, pelo menos) o teste do detetor de mentiras. Não são racistas. Simplesmente, têm mais medo quando veem um negro. Pode ser a andar ou a conduzir um carro ou simplesmente a beber um refrigerante. É involuntário, é natural, é normal, é assim. Tal como as pessoas que, quando veem o Renato Sanches, perguntam logo se ele nasceu mesmo no dia em que diz que nasceu. O angolano José Eduardo Agualusa já não terá esse problema, por razões que não vêm ao caso. Desculpem lá, mas isto é uma dúvida normal. É tão normal como perguntar a Obama se nasceu mesmo nos EUA, porque a cor dele não parece indicar isso. Por vezes, é certo, o resultado é dizer a alguém nascido na Amadora "vai para a tua terra". Mas um erro todos podemos cometer, não? Errar é humano.

O vídeo que, em direto, a namorada do homem assassinado fez antes que os polícias em estado de choque a pudessem impedir mostra uma coisa que não me choca assim tanto e outra que me choca mesmo muito. Começo pela que não me choca: um homem negro num carro gemendo e com sangue a empapar a camisola. Vi suficientes filmes de ação para a cena me ser familiar.

Não, o que me choca mesmo - me banza - é o modo articulado e bem-educado, usando sempre as frases certas, com que a moça fala ao polícia que fez os disparos. Essa parte eu não sabia, que uma mulher ao lado de um homem baleado pudesse ser tão calma e articulada. Fosse comigo e eu estaria aos berros, histérico, tal como todas as amigas brancas que eu tenho (e são muitas). Aos berros, chorando ou insultando o autor dos disparos. Mas a moça não. A jovem Diamond Reynolds fala com a maior calma possível, e usando as frases certas (aliás, expressões feitas, friamente burocrática, que reconheço de muitos formulários). E a sua calma denota um saber de experiência feito, como diria Camões. Ela fala com calma e usando sempre as frases certas, por duas razões básicas: para não levar ela própria um tiro e também para acalmar o polícia - o pobre, mesmo com o outro a esvair-se em sangue, ainda segura a arma nas trémulas mãos e continua a apontá-la tanto ao moribundo como a ela. O agente não tenta ajudar: está demasiado em pânico para se lembrar que salvar vidas também faz parte do protocolo. Ou então não faz parte do protocolo - essa parte caberá às ambulâncias, quando e se chegarem. A moça sabe - parece saber - que o autor dos disparos não é mau tipo. Talvez ele até nem seja racista. Provavelmente nem é - como poderia ser, se não aceitam racistas nas forças policiais? É apenas um homem com medo. Armado. Na academia ter-lhe-ão ensinado como reagir numa situação delicada. E ele, melhor ou pior, aplicou até onde pode o protocolo. E a verdade é que o negro podia estar armado. Aliás, segundo o vídeo de Reynolds, a vítima tinha dito ao agente que trazia uma arma no guarda-luvas, como qualquer americano normal, mas que tinha licença para ela. Estava tudo legal, como com qualquer americano normal. É verdade, no entanto, que ele podia ser um criminoso. Só fica a pergunta: acaso o polícia teria agido assim, disparando quatro tiros, se encontrasse na estrada com uma luz na traseira fundida Jeffrey Dahmer (17 vítimas), James Holmes (12 vítimas), Joseph Paul Franklin (pelo menos 14 vítimas)? Era bom, não era? Mas improvável. Esses homens podiam ser assassinos, podiam ter alma de assassinos, podiam até ter cara de assassinos - mas não tinham cor de assassinos.

A moça no vídeo fala com clareza e articulação porque foi treinada para isso. Quase parece uma lei antiga inscrita sob a pele: "Filha, quando falares com um polícia baixa a bola. Mesmo que, sendo tu gerente bancária, ele te confunda com uma prostituta, baixa a bola. Mesmo que ele tenha acabado de dar um tiro num inocente, mantém a calma. Usa só palavras formais. Frases feitas." Caramba, a dado momento ela até diz: "Sim, sir, sim, eu mantenho as mãos bem à vista. Mas o senhor acaba de disparar quatro tiros sem razão ou provocação contra o meu namorado. Importa-se de ver se ele está bem?" Porque ela sabe que as coisas normais numa mulher branca naquelas circunstâncias - deixar de ser articulada, "entrar em histeria", "desatar aos gritos", etc. - no caso dela e naquele contexto convém evitar. Podem assustar o homem armado.

O que eu vejo ali são anos de experiência interiorizada - décadas até. Não vou dizer que está no código genético, mas pelo código cultural já não ponho as mãos no fogo.

Uma amiga minha namora com um afroamericano. E diz: "Eu tenho medo quando ele sai à noite." Ir à mercearia comprar tabaco pode ser uma aventura letal.

E agora cinco agentes foram mortos. É uma tragédia inaceitável. Uma escalada impensável. Mas ocorreu. 

É que os agentes são fáceis de identificar - usam um uniforme. País algum pode tolerar que os seus agentes da ordem se tornem alvos móveis. País algum pode permitir a presunção de que usar uma farda policial se torne um risco. Ninguém - por maior sentimento de injustiça que sinta - pode regozijar-se com estas mortes. São uma acha mais numa tragédia. Vítimas inocentes numa espiral insana e estúpida. Não interessam as causas, o pretexto ou uma qualquer autoridade moral. "Vingar as mortes injustiçadas" não é justiça. Só cabeças perversas ou muito básicas podem ver estes atos bárbaros como justiça ou motivo para regozijo. Agora só podemos rezar pelas vítimas e que as mortes destes polícias não sejam um mini-incêndio do Reichstag - o pretexto que em 1933 faltava aos nazis para consumarem o seu plano.

Em algumas escolas americanas já há cursos a explicar "como agir" caso alguém armado decida começar aos tiros. Deliramos ou quê?

A América tem um problema a resolver. A cor do crime. E tem outro: as armas. Qual deles resolverá primeiro seria uma ótima pergunta. Infelizmente, a cada dia que passa, mais do que uma pergunta, está a tornar-se uma piada de mau gosto.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
13/07/16

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