01/04/2016

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HOJE NO 
"DIÁRIO ECONÓMICO"

Mário Viegas
um actor com uma AK-47 nas mãos

Nos 20 anos do seu desaparecimento, recordamos um dos aspectos mais escondidos do perfil do mais importante declamador de poesia do país: o de colunista do Diário Económico.

Matou definitivamente o pobre poeta Júlio Dantas; fez o operário em construção dizer que ‘não’ para sempre ao seu patrão usurpador; quis fazer de conta que queria ser um presidente a quem o sonho comandasse a vida; transformou D. João VI, o último dos absolutistas, num personagem anacrónico e um pouco tomado pela loucura do tempo dele; fez de Mário Henrique Leiria o que ele é: o primeiro e um dos mais temíveis humoristas deste país sem humor que se veja; levou a poesia ao lugar dela: a todo o lado.
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A Invenção da Água de Mário Henrique-Leiria

António Mário Lopes Pereira Viegas morreu faz hoje 20 anos: a 1 de Abril de 1996, num dia em que a sua morte soou como uma mentira estúpida que se adivinhava verdadeira para sempre. Para trás (mas também para a frente) ficava uma vida que o seu autor quis dedicar ao teatro, sempre ao teatro mesmo quando não estava em palco – ou mais propriamente num palco de um teatro – e à poesia toda.

Nascido em Santarém a 10 de Novembro de 1948 – no mesmo dia em que Mikhail Kalashnikov fazia 29 anos – Mário Viegas usou todas as palavras como se elas estivessem dentro de um carregador de uma AK-47: na sua voz, nos seus gestos e nos esgares que as acompanhavam, usou-as de forma que ninguém pudesse deixar de ser por elas atingido.

Auto-determinado como anarquista de esquerda, o actor – que também havia de ser poeta, mas isso ninguém sabe – portou-se como isso mesmo pela vida toda: esteve sempre na fronteira indistinta entre o niilismo mais desbragado, quase inconsequente, e a defesa intransigente da sebenta libertária, filha da praia que estava sob a calçada parisiense em Maio de 68.

Associou-se aos grupos anti-regime antes da Revolução de 25 de Abril de 1974 – já lá vão milhares de anos – e continuou desse lado da barricada até ao fim (porque chegou a haver barricadas, como mais uma vez ficou provado quando um socialista chamado António Costa quis formar um governo sem ter ganho as eleições, corria o ano de 2016). Correu as veredas felizes da alfabetização e o lado mais colorido do processo revolucionário em curso, levou a sua arte aos mais recônditos e fê-los usufruir do que de mais belo tinham os sonhos dessa altura.

Depois não desistiu: enquanto tantos outros se iam entrincheirando no anonimato e outros ainda faziam o tirocínio muitas vezes envergonhado de passar para o outro lado da barricada, Mário Viegas manteve-se no mesmo sítio. A sua candidatura a deputado pela UDP em 1995, como independente, e, no ano seguinte, a corrida à Presidência da República adoptando o slogan ‘O sonho ao poder’, são uma mistura disso tudo: irreverência, resistência, independência e o que mais se queira.

No meio disso tudo, teve tempo para fundar três companhias de teatro; para dar cabo da paciência aos próprios amigos – a sua disposição para ir aos extremos comportamentais, sexuais e pouco normais eram uma dor de cabeça constante; para participar em mais de 15 películas cinematográficas; e para receber o título de comendador da Ordem do Infante D. Henrique das mãos de Mário Soares (1994).

E também para ser colunista do Diário Económico. Há que assumir que o Diário Económico não é o jornal onde se espera encontrar uma crónica assinada por Mário Viegas: no meio de contas sobre o défice, de resultados anuais de empresas cotadas e de reportagens sobre eólicas, que sentido faz encontrar a prosa de um anarquista? Faz todo o sentido! Não só pelo ecletismo que foi sempre marca distintiva do Diário Económico, como também pelo exactamente igual ecletismo do autor, muito pouco disponível para se submeter a rotulagens que pudessem confranger a sua liberdade total e absoluta. Foi para ele, Mário Viegas, muito possivelmente um desafio a que a sua AK 47 não podia resistir. É essa metralha que vale a pena recordar nos 20 anos da sua partida – que nenhuma morte há-de calar.

* Temos saudades de Mário Viegas no teatro, na televisão e no cinema, a sua voz vincada ainda nos soa, agora com tristeza.


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