14/01/2016

HELENA FERRO DE GOUVEIA

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Alemanha 
Colónia – 
Noite que mudou tudo?

A histeria em torno de Colónia não surpreende. Muitos esperavam por algo assim para fazer pagar aos alemães e à chanceler a “arrogância” e o “unilateralismo” de fazer respeitar o direito internacional

O Ano Novo começou com um choque: pirotecnia arremessada contra pessoas, assaltos em bando, agressões sexuais a mulheres. O que aconteceu realmente em Colónia? E que efeitos poderá ter sobre a política de refugiados na Alemanha?

Às vezes ao ler que se publica sobre a Alemanha dá vontade de desistir, de baixar os braços e esquecer. Só que o tema é demasiado sério para ceder à tentação da desistência.

Nesta semana que vivemos assistimos a uma histeria colectiva, que se alastrou até a esse farol da tolerância que é Donald Trump: hordas de bárbaros estariam a cair como abutres sobre as mulheres na Alemanha. Rapidamente, um pouco por toda a Europa e Ocidente, homens e mulheres “de bem” se uniram, num apologético oportunismo, para defender as “nossas” mulheres contra “os refugiados” e de passagem atacando o silêncio das feministas.

Como estamos numa situação de pós-tsunami a única coisa séria a fazer, para se poder conduzir um debate necessário e sereno sobre emigração e refugiados, sobre as falências da Alemanha e da Europa, é desmontar a argumentação dos histéricos. Boa parte desta baseia-se em sofismas. Em mentiras descaradas ou meias verdades. Vejamos como.

O primeiro sofisma que tem sido alimentado é o do número de atacantes, que só serve para acicatar as paixões: “mil homens atacaram mulheres em Colónia”. Ora, vamos aos factos. Segundo a polícia da cidade – que disponibiliza online, em alemão, todos os dados relativos à investigação, estariam na noite de 31 de Dezembro, na praça em frente à Hauptbahnhof, 1700 pessoas (homens, mulheres e polícias), um número normal em noite de Ano Novo. O número de atacantes está estimado pelas autoridades em cerca de 40, dos quais mais de 30 suspeitos foram identificados, muitos são requentes de asilo ou refugiados. Um homem de 19 anos foi detido pelo roubo de um telemóvel.

Não é preciso ser-se militar, polícia ou pertencer à protecção civil para perceber que se existissem mil atacantes as dimensões, já de si gravíssimas, seriam bíblicas. Basta bom-senso para deitar por terra este enredo.

O segundo sofisma é o da “violação em massa”. Uma vez mais os números. Foram apresentadas até este domingo 516 queixas, 40 por cento das quais por abuso sexual, entre essas há duas por violação. Só para colocar as coisas na sua devida proporção, na Oktoberfest em Munique a média é dez violações diárias, perpetradas por europeus, muito deles alemães, estimando as organizações de defesa da mulher que o número real atinja as duas centenas de agressões.

É preciso que não haja confusão nos espíritos: parece-me ser consensual que qualquer abuso sobre mulheres é intolerável, que violência de género deva ser combatida 365 dias por ano independentemente do passaporte e que os abusadores sejam responsabilizados. Não se pode é ter a condescência de pensar que foram os “outros”, os “estrangeiros”, os “refugiados” que trouxeram a violência sexual e o sexismo à Alemanha, ela existe desde há muito (quem tenha interesse que google a campanha #Aufschrei). É pérfido acusar homens e mulheres feministas de indiferença ou silêncio, quando o que eles e elas fizeram foi não permitir serem instrumentalizados ou servirem de arma de arremesso.

O terceiro sofisma é o do “silenciamento” ou “branqueamento” dos media alemães. Esta acusação é particularmente perigosa a vários títulos. Perigosa nos fins e nos meios. As várias correntes radicais na Alemanha, desde o partido mascarado de democrático, AfD, ao movimento de extrema-direita Pegida (que congrega neonazis, hooligans, cidadãos xenófobos em várias nuances e populistas vários), têm orquestrado uma campanha contra a imprensa acusando-a de servir mentiras e de ser uma imprensa de causas, neste caso pró-refugiados. Como se não houvesse uma tradição de jornalismo crítico, de investigação e equilibrado na Alemanha, país onde, pelo peso do passado, os media são lúcidos e atentos a qualquer tique totalitário.

Dito isto, vamos aos factos. Os ataques ocorreram entre as 21h00 e 23h30 de 31 de Dezembro. A conferência de imprensa da polícia, na qual se tornou possível ter uma ideia do que se passou nessa noite, teve lugar a 3 de Janeiro. Desde então os media noticiam detalhadamente e de forma exemplar os acontecimentos. A nacionalidade dos suspeitos ou a possibilidade de entre os atacantes se encontrarem refugiados nunca foi encoberta. Vá-se aos arquivos, veja-se as reportagens dos canais públicos e privados e leia-se o excelente artigo da Spiegel Online.

A histeria em torno de Colónia não surpreende. Muitos esperavam por algo semelhante para fazer pagar aos alemães e em particular à sua chanceler a “arrogância” e o “unilateralismo” de fazer respeitar o direito internacional e se mostrar a única líder à altura num momento histórico complexo e numa União Europeia que transformou a política num negócio de mercearia sem qualquer grandeur.

É evidente que os valores de uma sociedade aberta como alemã e as liberdades cívicas, entre elas o respeito pela mulher e o seu corpo, terão de ser respeitadas pelos que aqui procuram abrigo. É evidente que não pode haver cedências ao “politicamente correcto”. Agora não se misture o que não deve ser misturado. Nada vai mudar na política de refugiados alemã. E se queremos defender a nossa civilização e os valores de tanto nos orgulhamos, entre eles a tolerância, ainda bem.

Jornalista, vive na Alemanha, autora do blogue Domadora de Camaleões

IN "OBSERVADOR"
10/01/16

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