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Co-adopção:
tornar mais curto o mundo
O que esta proposta de referendo faz é negar a quem ama de forma diferente da maioria uma habitação com direito a ter direitos.
Escrevi uma vez um poema chamado “Um pouco só de Goya: Carta a minha
filha”, que dialogava com o belíssimo poema de Jorge de Sena, de
1963,“Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, onde Sena
denunciava as “infinitas maneiras de prevalecer, / aniquilando
mansamente, delicadamente, / por ínvios caminhos quais se diz que são
ínvios os de Deus”.
Nesse meu poema, tentei
falar “das formas de amar todas diversas / mas feitas de pequenos sons
de espanto, / se o justo e o humano aí se abraçam”, quis dizer das
múltiplas maneiras que há de amar e de se estar no mundo, desde que a
essas formas presida a condição humana da justiça, que implica o
respeito e o cuidado.
Vem isto a propósito do projecto-lei
aprovado no Parlamento, em Maio de 2013, sobre a co-adopção de crianças
por casais do mesmo sexo, e do referendo proposto agora pela JSD e
aprovado por maioria. Pergunto: a quanto mais conservadorismo teremos
nós que assistir; a quanta mais indignidade e crueldade? Sem ser em
verso, era também de justiça e de cuidado que aludia o Instituto de
Apoio à Criança, ao referir-se a esse projecto-lei de Maio passado. Tal
projecto, dizia o IAC, “veio solucionar e dar resposta a casos de
crianças que, por terem apenas uma menção relativa à sua paternidade ou
maternidade, ficaram, desta forma, com a sua situação jurídica mais
segura e protegida”. Não falamos de números, mas de crianças concretas
que, caso o referendo avance e a lei não passe, ficam desprovidas do
direito de protecção jurídica e emocional estável, se falhar uma das
pessoas que compõem o seu agregado de afectos e cuidados, de educação e
de formação; falamos ainda de crianças que se encontram sem famílias e
em instituições; e falamos de pessoas que estão dispostas, enquanto
casal, a amá-las e a protegê-las, a educá-las e a mostrar-lhes que o
mundo pode ser mais belo e mais completo, mesmo que incompleto de
imperfeições, se a todos e todas for dado lugar. Falamos, pois, de
decência, de justiça, de direitos. E de amor.
Ora o que esta
proposta de referendo faz é hierarquizar o amor, o mesmo que é dizer os
amores, ou as formas de amar, colocando aqueles que não se enquadram na
moldura dominante numa espécie de quarto dos fundos, escuro, objecto de
vergonha, abjecto, afinal. O que esta proposta de referendo faz é negar a
quem ama de forma diferente da maioria uma habitação com direito a ter
direitos.
O grupo que agora propôs no Parlamento este referendo é
um grupo que se diz de juventude, que se chama Juventude Social
Democrata. Qual a importância das palavras e das designações? Sabemos
que, infelizmente e cada vez mais: nenhuma. E sabemos todos também como
as palavras “social” e “democracia” têm vindo a ser vilipendiadas e
estão gastas e em desajuste daqueles e daquilo que designam. Seria,
pois, retórico perguntar: onde está a indignação destes jovens quanto à
multidão de crianças que em Portugal passa fome ou entra sem
pequeno-almoço nas escolas? Talvez mais útil seria interrogarmo-nos
sobre a razão pela qual os dois grandes referendos neste país foram
sobre a interrupção voluntária da gravidez e agora sobre a co-adopção
por casais homossexuais. A economia arredada do social está já
controlada, e de forma eficaz, por este Governo. Não querendo misturar
as coisas, diria que ambas as questões que o PSD considerou fracturantes
na sociedade e para as quais reivindicou referendos têm a ver com o
corpo e com uma única coisa: o controle daquilo que nos é mais
intrínseco e privado, que é a sexualidade e a livre expressão dos
afectos. Controlada que está a distribuição da riqueza, faltava agora
controlar este último reduto.
Quanta mais indignidade?, pergunto.
Poderia também perguntar: “Quanto mais embuste?” Embuste, porque,
pensando do ponto de vista de coerência interna de um Governo cuja única
linguagem que sabe usar é a do dinheiro, não deixa de ser curioso que o
PSD encarregue a JSD de, nesta altura de crise, propor o gasto de
milhões de euros num referendo que diz respeito às minorias sexuais.
Embuste, portanto, porque tudo parece montado para desviar as atenções
dos constantes atropelos noutras áreas, como os cortes nos salários ou
nas reformas, ou os vergonhosos negócios, abençoados pelos compadrios
entre o Estado e o sector privado. Essas são as “infinitas maneiras de
prevalecer” que este Governo tem demonstrado, aniquilando, embora não
“mansamente” nem “delicadamente”, mas por também “ínvios caminhos”.
Contudo, não perguntaria nunca “quanta mais incompetência?”, porque,
como já disse em vários sítios, eles sabem muito bem o que estão a fazer
e chamar-lhes incompetentes é desresponsabilizá-los de gestos pensados,
como este, e de acções concertadas e com fitos bem claros.
Naquele
meu poema, que foi escrito em 1998, quis oferecer à minha filha
antídotos possíveis, feitos de amor e de poesia contra algo que eu
receava: que, “num futuro mais perto”, lhe viessem dizer que “quem assim
habita os espaços das vidas / tem olhos de gigante ou chifres
monstruosos”. Não sabia que, quase vinte anos depois, veria no meu país a
gente que o governa a defender isto mesmo. É nosso o dever da denúncia e
a revolta. Deles é a indignidade. E a vergonha de querer tornar mais
curto o mundo.
Poeta e professora universitária
IN "PÚBLICO"
29/01/14
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