16/10/2014

ALBERTO GONÇALVES

.



O escritor fantasma

Uma última viagem na sua permanente vocação para agitar consciências, diz o anúncio da Porto Editora. Um acto revolucionário, diz o juiz espanhol Baltasar Garzón. Saramago vintage, diz o editor brasileiro do falecido escritor. Saramago no seu melhor, diz o editor português. Uma obra divertida, diz Eduardo Lourenço.

Tudo isto a propósito de "Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas", o dito romance inacabado de José Saramago. Na verdade, de romances inacabados está o mundo cheio. Alabardas inaugura um género novo, o dos romances praticamente por começar. 

Não é que não haja um livro: há, aliás com 135 páginas. Seis são notas do autor. Cinquenta são textos de outros autores sobre o autor e o produto em causa. Dez são índices, ficha técnica e diversos. Doze são desenhos de um antigo membro das Waffen-SS. Sobram 57 folhinhas, impressas em fonte crescida e a dois (ou três) espaços. Ninguém se deve admirar se, no mês que vem, publicarem os últimos post-it que Saramago colou no frigorífico, em cinco volumes repletos de ensaios alheios, bonecos para colorir e a oferta de uma echarpe em tons marrom. Meia dúzia de críticos hão-de considerar estarmos perante um momento de ruptura na cultura universal.

Num certo sentido, Alabardas consagra de facto o estilo do Nobel caseiro, que em vida fazia questão de anunciar, ele próprio, o carácter polémico de cada livro antes mesmo de o livro chegar ao público. Um boa estratégia, até porque quando o livro chegava ao público não acontecia nada de especial - excepto se o público se chamava Sousa Lara. Devido a condicionantes óbvias, agora o anúncio da polémica ficou a cargo de terceiros, mas o processo é idêntico e com uma vantagem: se o hábito consiste em privilegiar a algazarra em detrimento do conteúdo, desta vez o conteúdo quase não existe e a algazarra abunda. Saramago vintage, de facto. E, desde que ignoremos os pechisbeques anexos, a minha obra preferida dele. As outras não se liam em horas. Conto não ler esta em vinte minutos.

Domingo, 5 de Outubro
As fitas que as elites fazem
Deixem-me citar António-Pedro Vasconcelos (APV), em entrevista ao DN a pretexto do seu recente filme: "(...) Isso levou-me a pensar muito no Frank Capra e no Vittorio De Sica, que fizeram filmes em momentos de crises terríveis, mas sem deitar as pessoas abaixo. A questão é que o Capra tinha o Roosevelt e nós temos o Cavaco. É um bocado diferente. O neorrealismo partiu de coisas atrozes como a guerra e o fascismo, mas havia um horizonte de esperança."
Passemos ao ponto da situação. Para APV, APV é um cineasta comparável a Capra e a De Sica. Roosevelt suscitava admiração. O fascismo permitia, ou até estimulava, o optimismo. A Depressão e a II Guerra eram preferíveis à austeridade da troika. E o Prof. Cavaco é o mais reles dos estadistas, tão mau que embora presida ao regime que subsidia as pérolas de APV, indirectamente impede um génio do calibre de APV de fazer o tipo de fitas que os seus heróis fizeram.
Porém, APV faz outras fitas. Entre elas, apoia António Costa. E não se trata de um apoio casual: APV foi a acções de campanha do homem, apareceu excitadíssimo na noite da vitória nas primárias, atribui-lhe virtudes como a "paixão", o "rigor" e a "seriedade".
Ora aqui é que a coisa se complica. Ninguém estranhará que APV, vulto da Cultura com maiúscula, despreze o Prof. Cavaco, subido dos Algarves e da classe média rural. Já é esquisito que o seu elevado grau de exigência se satisfaça com o Dr. Costa, o portento que geriu bastante melhor a carreira política do que uma mera autarquia. Em larga medida, é o mesmo que escarnecer de José Cid para louvar os méritos do cançonetista Toy. Mas é justamente essa a especialidade das nossas elites, que APV representa na perfeição. E se as elites traduzem um país, pobre país. 

Quarta-feira, 8 de Outubro
Os direitos do indivíduo
Marinho e Pinto prometera um striptease do salário e fê-lo em meros 17 dias, pelo que demorou apenas um pouco mais que o striptease literal da dançarina exótica média. Infelizmente (ou felizmente, que aqui a doutrina divide-se), ficou uma peça de roupa por tirar, ou por declarar ao TC: os 54 mil euros que Marinho e Pinto recebeu da Ordem dos Advogados a título de subsídio de "reinserção na actividade profissional". "É vida privada", explicou o homem que veio purificar a política.

E "privada" é favor. O tal subsídio foi criado em 2008 pelo então bastonário da Ordem, por coincidência Marinho e Pinto. "Tudo o que fiz foi de acordo com a lei e com as regras estabelecidas", afirma o justiceiro, sem falsos pudores perante o facto de a lei e as regras serem da autoria dele ou de confrades dele. Ao mesmo tempo, e talvez sem dar por ela, Marinho e Pinto estabelece uma mudança radical na relação dos contribuintes com o fisco. Se o precedente vingar, a partir de agora é o cidadão que decide qual a parte dos rendimentos susceptível de impostos e qual a parte isenta. Nunca antes se defendeu tão bem os direitos do indivíduo, o indivíduo Marinho e Pinto, claro. 

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
12/10/14


.

Sem comentários:

Enviar um comentário