19/09/2014

CARLA COOK

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Abuso da Liberdade 
de Imprensa

O Papa Francisco aprovou os estatutos da Associação Internacional de Exorcistas no Vaticano, legalizando os exorcismos. Deste assunto não se fez grande publicidade, talvez porque, dentro da própria Igreja Católica, os padres exorcistas sejam uma espécie de classe à parte – isto sem falar no conceito de exorcismo que leva, de imediato, a questionar a ideia de Diabo e a sua (possível) influência prática nas vivências. No seguimento desta legalização, o Rev. Francesco Bamonte disse à Imprensa que “o exorcismo era um ato de caridade para com aqueles que sofrem” e que “as possessões diabólicas estavam a aumentar porque hoje em dia muita gente se dedicava ao ocultismo.” O Vaticano não se pronunciou. Mutatis mutandis, também eu não me pronuncio porque não pratico o catolicismo e não tenho conhecimentos para opinar.

No entanto, esta contemporaneidade do exorcismo veio-me à cabeça quando li que um jornal inglês estava a ser severamente criticado pela exploração de uma história dita satânica. O jornal apresentava na capa um menino de 4 anos, cuja barriguinha nua apresentava um sinal, que – segundo o jornal noticiava em parangonas – era “ a marca do Diabo”. No artigo interior, o jornal entrevistava os pais e, para maior exposição, escolheu identificar e nomear a criança. Já estou, portanto, a ver o drama que este menino passou a viver em público, sobretudo no colégio, onde, depois desse artigo, não terão faltado pais histéricos e colegas provocadores...

Em si, o artigo é jornalisticamente pobre e ridiculamente mal formulado - baseia-se numa entrevista aos pais da criança, que parecem desejosos de contar ao mundo a aflição que lhes coube porque “algo sobrenatural visitou o nosso filho”. Também insistem em que não sabem como foi feito um símbolo tão bem desenhado que, eventualmente e noutras circunstâncias, nos faria pensar porque raio andariam eles a marcar a criança como se fosse gado... (perdão pela divagação). Bem pior do que isso é, no entanto, a utilização completa da criança cujo nome e cara estão estampados no jornal. Será que ninguém pensou que um ser humano com 4 anos é um ser humano de pleno direito? E que, portanto, não pode nem deve ser usado para fins publicitários e muito menos “endemoninhado” publicamente? O que isso lhe pode trazer de prejudicial numa sociedade conservadora e desejosa de uma caça às bruxas é assustador, sobretudo se tivermos em conta que a criança não está a ser protegida por ninguém – são os pais que o consideram marcado pelo Demónio e o expõem como tal...

A questão dos direitos do menino foi levantada por diversos Membros do Parlamento dos dois principais partidos – já disse que isto foi na Inglaterra? – que denunciaram o caso à Press Complaints Comission, afirmando que o jornal fora completamente “inapropriado, irresponsável e errado”; “será que não se envergonham disto?”. O jornal respondeu dizendo que “a história tinha chegado até à redação [são sempre misteriosos os caminhos da informação] e que nunca encorajaram os pais a dar a entrevista, até porque os pais já tinham explorado a história nas redes sociais sem qualquer preocupação pelo bem estar da criança em causa.”

Obviamente, os principais “culpados” desta situação são os pais, cuja insensibilidade está à vista. Mas isso advém do velho mito que alguns pais têm de que são donos dos filhos como são donos de um poodle ou de um carro. No entanto, também critico o editor, claro. Sendo o jornal da sua responsabilidade, a escolha de publicar uma fotografia do rosto da criança bem como de publicar o nome do menino é sua. Podia fazer a história sem lhe apontar o dedo. O consentimento paterno não inviabiliza a sua óbvia falta de ética.

Por outro lado, saúdo esta cultura inglesa que não receia apontar o erro quando isso fere a sua noção de “honour”. Em Portugal, podemos fazer queixas e reclamações pela falta de ética da imprensa, pelas suas falsas informações, podemos lutar pelos direitos de quem não pode falar por si, que o mais que nos acontece é sermos silenciados por algum editor cuja capacidade de resposta é igual à sua capacidade redactora.


Licenciada em Estudos Portugueses e Ingleses (UAçores,2000). Mestre em Cultura e Literatura Portuguesas com uma tese sobre a infância e adolescência na ficção de Vitorino Nemésio.

IN "AÇORIANO ORIENTAL"
15/09/14


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