25/05/2014

NICOLAU DO VALE PAIS

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Incêndios e abstenção:
 é para deixar arder?  

A abstenção não é nenhum extintor, mas sim gasolina na fogueira.

Neva na Serra da Estrela às portas dos Santos Populares: falemos de eleições.

Ao céptico não lhe ocorre que o ambientalista possa estar certo nos fins, mesmo que obtuso e utópico nos meios; ao abstencionista não lhe ocorre que o seu acto possa ter, como resultado indirecto, o fim do direito a que tão galantemente renuncia. Esclarecedores dias, estes, em que a consequência de não votar pode desembocar num futuro negro que demonstrará tarde demais que a abstenção não é nenhum extintor, mas gasolina na fogueira. Ide votar, portanto, mesmo que sem caneta, e desculpem se me repito: façam uns chifres no boletim, se preciso for; dessa forma, o vosso gesto não será alvo das mais erráticas e obscuras interpretações demagógicas e será só isso mesmo - um par de chifres.

Não votar tem a eficácia das imagens do país a arder ao vivo e em directo, ano após ano, nos telejornais - a eficácia "zero". Temo que chegue o dia em que a indiferença tome proporções tais que, ao invés de se transformar num pretenso protesto afirmativo e libertário, se transforme em argumentação falaciosa para a edificação de uma prisão pior - muito pior - do que este asilo em que achamos que vivemos. A falta de participação cívica - onde se inclui, entre outros "pormaiores", o abstencionismo eleitoral - é o óleo da máquina compressora em que está transformado o eixo político-mediático; "eles", como gostamos hoje em dia de generalizar, vivem tanto do voto como da falta dele - é a nós que faz falta o sufrágio, e é sobre esse vácuo que tem avançado, sub-reptícia e tentacularmente, a criação de um sistema venal e hipócrita, responsável pelo abandono de pessoas e valores, mas cheio de homens providenciais. Não consigo encontrar melhor metáfora para este desatino generalizado do que a forma inexpugnável como, ano após ano, hectare após hectare, se deixa arder o país. Votar deveria ser um acto de prudência, como não acender fogueiras em pleno Verão - qualquer descuido pode tornar-se numa calamidade colectiva que os pequenos delitos individuais não deixavam, na sua aparente simplicidade inofensiva, antever. O culto catastrofista nacional não leva a lado nenhum; virar-lhe a cara, também não.

Não interessa se você é "neo-hippie" e tem como "slogan" lírico o vetusto "não herdámos o planeta dos nossos pais, pedimo-lo emprestado aos nossos filhos"; tão pouco interessa se o seu enviesamento neo-liberal o leva a achar que "money talks and bullshit walks" - de facto, tal e qual como a abstenção, estamos a falar de problemas cuja solução não tem receita, apenas caminho. Essa tomada de consciência começa no fim da denegação implícita que surge no paradoxo de se criticar um sistema e, ao mesmo tempo, recusar-se a participar dele. Entender a urgência em recuperar a relação de afecto com "a terra" (ou com o mar e as pescas, vai dar ao mesmo) seria, na minha opinião, uma forma transversal de eficácia inédita no que toca à refundação do sistema político e da própria noção de Estado - resolver esse vazio, uma missão difícil, mas possível, para o próximo Presidente da República; isto enquanto, lá está, ainda podemos votar e cheirar algumas cerejeiras no meio do eucaliptal lusitano.

Na sexta-feira 9 de Maio, o "Jornal de Notícias" assinalava na capa um número espantoso: entre o consumo de património florestal e recursos gastos a combatê-lo, os incêndios custaram ao país, em 11 anos, qualquer coisa como 2,9 mil milhões de euros - ou seja, 10% da dívida nacional. Uma barbaridade só ultrapassada por outra, em que ninguém parece querer pensar a sério: os incêndios estão na nossa memória colectiva como um tsunami ou um qualquer outro armagedão, amputando à nossa cultura outros tantos biliões incomensuráveis em auto-estima e descrença na mutualização da responsabilidade pública, que deveria ser o pilar salutar de qualquer democracia civilizada. Como votar.

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
23/05/14


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