28/05/2014

JÚLIA CARÉ

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Autoridade proibida

 Os tempos mudaram no que diz respeito ao conceito de autoridade, disciplina, punição

Tu sentas-te e não te levantas sem ordem da reitoria!” A voz contundente escondida por detrás de um ameaçador dedo em riste; uns óculos grossos com minúsculas pupilas no meio e cadenciados passos rangentes. Ainda hoje incomoda a injustiça e desproporção da ordem. Durante os sete anos de Liceu, a reitoria foi sempre um lugar a evitar. Passava-se à porta em passo rápido e leve não fosse de lá sair a figura temida… Outras vozes mais afectivas ajudaram a construir a noção de autoridade. “Hoje vais para a escola. A partir de agora, respeitas a senhora professora como a mim e a tua mãe. Livra-te de lhe faltares ao respeito!…” Era assim há cinquenta e mais anos… Hoje é muito diferente. Já não há reitorias nas escolas, nem a sua carga autoritária, impositiva de obediência submissa. 

Em democracia, a construção da autoridade radica na liberdade, a mola inspiradora das relações interpessoais e no respeito que todas as pessoas igualmente merecem: na escola, na família, na sociedade; o que não dispensa a observância de normas democraticamente aprovadas, infelizmente subvertidas pelo clima de desrespeito, incivilidade e violência de muitas escolas e a atitude agressiva de certos pais em relação aos professores, corrosiva até para a sua própria autoridade junto dos filhos. Não é de admirar o desânimo dos muitos professores que querem abandonar a profissão docente, frustrados e desmoralizados também por uma alienada e oca burocratização da escola…

“Fiquem com a minha filha” lia-se num jornal, de uma mãe farta dos problemas com a filha adolescente. Sobressalta sempre, saber de idas da polícia em socorro de instituições com uma base moral e uma responsabilidade social tão forte como a família ou a escola, municiadas que deveriam estar para no seu seio e por si próprias resolver conflitos relacionais. Inquieta haver pais que confessam não conseguir lidar com filhos de dois anos! Sabe-se com inquietante frequência de contextos de violência familiar, caldo de cultura pernicioso, transversal em termos de estrato social, ciclo vicioso que por norma enrola na sua espiral a escola e a comunidade em episódios infelizes, multiplicadores das patológicas tensões sociais que comprometem o futuro. Perdemos todos!

Poderá parecer descabido falar-se de autoridade em tempo de democracia e na sequência da instituição da máxima, “é proibido proibir” que alterou a hierarquia das relações interpessoais, face a uma nova abordagem do permitido, tolerado, sendo não raras vezes difícil distinguir a fronteira entre tolerância e permissividade, - ou nebulosas de ambiguidade - prefigurando antes indiferença, comodismo, desresponsabilização, manipulação, com naturais reflexos no contexto familiar e escolar. À luz de modernos conceitos de direitos e deveres de cidadania, sobrepôs-se a noção de bem-estar à ideia de autoridade, quer no relacionamento pais-filhos, quer entre alunos-professores. 

À autoridade associou-se tudo o que é temido, logo desagradável. Tornou-se politicamente incorrecto dizer aos jovens o que devem ou não fazer, desde a adolescência. Entendeu-se que para uma harmoniosa construção da sua personalidade, devia ser-lhes dado alguma liberdade de movimentos e acção… Tornou-se complexo estabelecer normas de conduta, padrões de comportamento, valores, face às muitas pressões dos grupos de amigos, necessários também ao seu desenvolvimento e integração social. Com os resultados à vista.

 Os tempos mudaram no que diz respeito ao conceito de autoridade, disciplina, punição. Não é mais defensável a aplicação das ancestrais sovas de pais déspotas. Nem o regresso à autoritária palmatória. Porém não podemos deixar de nos colocarmos algumas questões. Deve-se dar sempre tudo o que os filhos pedem? Deve-se rir, ou repreender a criança quando diz palavrões ou procede mal? Deve-se arrumar tudo o que os filhos deixam pelo chão; livros, sapatos, jogos, roupa, ou deve-se habituá-los a serem responsáveis pelas suas coisas desde cedo? Deve-se dar-lhes todo o dinheiro que pedirem, satisfazer-lhes todos os prazeres, desejos e apetites, ou habituá-los desde cedo a algum comedimento, contenção, frustração, austeridade? Devem os pais pôr-se unilateralmente sempre do lado dos filhos em qualquer conflito com familiares, vizinhos, professores…? E, na escola, o que fazer com a inquietante agressividade e violência, que por vezes quase prefigura pré-delinquência e amarfanha professores em lágrimas e depressões? Qual a benéfica eficácia das laudas de processos disciplinares, na mudança de atitudes e comportamentos para a cidadania?   

Não é fácil também a vida das famílias nos dias de hoje. Tão depressa são acusadas de negligenciar os seus filhos como ameaçadas de serem deles privadas por hipotético abuso, ou por carências e conflitos… A família tem vindo a sofrer alterações profundas, com as naturais consequências na sua coesão afectiva, emocional e relacional. E os filhos não trazem manuais de instruções, nem a sabedoria parental se adquire por inspiração divina. Aprende-se fazendo, errando e acertando... 

A construção assertiva da autoridade que educa, significa muitas vezes ter que limitar, recusar, impor regras, aplicar sansões reparadoras, em nome do bem-estar de todos de que o destinatário é o primeiro beneficiado, embora à partida não o compreenda. E, dizer NÃO. 

Na família e na escola. Sem acusações, recriminações, ou passa-culpas! Ajudará a partilha e assumpção de responsabilidades, se possível com saudáveis cumplicidades e parcerias, mas sem demissões, invasões ou intrusões. Em educação e democracia, autoridade será isto. Difícil? Sim! Proibido? 

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
26/05/14


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