15/05/2014

JOÃO MIGUEL TAVARES

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A culpa é sempre
 da austeridade 

Travestido de amor pela humanidade, está-se apenas a manipular o sofrimento alheio para alcançar ganhos políticos.

A notícia foi publicada neste jornal na semana passada, com o seguinte título: “O inferno de uma doente com cancro deixada na escadaria de uma igreja”. Acrescentava o pós-título, com trocadilhos celestes: “Uma mulher debilitada, com cancro, teve alta do Hospital Joaquim Urbano, no Porto, mesmo sem ter uma casa para onde ir. Passou uma tarde nas escadas de uma igreja, onde não viu o céu, até a Segurança Social lhe arranjar um quarto. O inferno em que vive está agora escondido numa pensão.”

O impacto foi imediato: a notícia foi replicada em vários meios de comunicação e nas redes sociais, a fotografia de Rosa nas escadarias da igreja tornou-se viral, só no site do PÚBLICO a notícia tem neste momento 37 mil partilhas, e na quinta-feira à noite escutei na SIC Notícias Gabriela Canavilhas referir-se à história de Rosa como um caso de “banalização da miséria” e da imposição em Portugal de uma “normalidade da pobreza”, culminando, nas suas palavras, na total “indiferença perante a dor e o desespero”. Basta juntar pelos pontinhos as sugestões de Canavilhas: as políticas de austeridade promovidas pelo Governo causaram desgraças como a de Rosa, que não só foi corrida do hospital portuense como ficou, apesar da extrema pobreza em que vivia, sem o Rendimento Social de Inserção.
Só que de seguida nós líamos a notícia e descobríamos uma realidade bastante diferente: o hospital não queria deixar sair Rosa; a doente insistiu em ir-se embora, garantindo que ia para casa de familiares; o próprio director do serviço de Pneumologia ofereceu-se para, do seu bolso, lhe pagar um táxi. Diria que enquanto retrato da “indiferença perante a dor” haverá melhores exemplos do que este. Mais: em declarações posteriores à Rádio Renascença, o Instituto da Segurança Social esclareceu que a prestação do RSI de Rosa havia sido “suspensa pela entrega tardia dos documentos necessários à sua renovação”.

É certo que, na sua intervenção na SIC Notícias, Gabriela Canavilhas admitiu a hipótese de Rosa ter saído do hospital a seu próprio pedido (“eventualmente até pode ter sido”), mas para a ex-ministra isso é mero detalhe. Afinal, a História demonstra que quando um bom socialista está imbuído de uma vontade incontida de fazer o bem, o desejo dos indivíduos conta pouco. Para o PS “Razão e coração”, o nosso dever é sempre ajudar o próximo – mesmo que o próximo não queira ser ajudado. É o Estado-papá, arrebanhando-nos para debaixo da sua protectora asa. Com este género de raciocínio, não admira que António José Seguro tenha prometido há mês e meio acabar com os sem-abrigo no espaço de uma legislatura.

Lamento, mas martelar uma notícia para a fazer encaixar numa narrativa pré-definida tem qualquer coisa de obsceno. Travestido de amor pela humanidade, está-se apenas a manipular o sofrimento alheio para alcançar ganhos políticos. Eu não tenho dúvidas de que a austeridade tenha originado inúmeras injustiças, que merecem ser denunciadas – mas denunciem-nas decentemente, se faz favor. E não transformem a austeridade no bode expiatório de todos os males do mundo, como se ela fosse a serpente que veio estragar o Paraíso. Existe um famoso adágio português que diz que “a culpa morre sempre solteira”. O que estamos a assistir nos últimos tempos é o contrário disso: um desejo imenso de arranjar sempre o mesmo marido para a culpa. Nem que para isso seja preciso arrastá-lo pelos cabelos até ao altar.

IN "PÚBLICO"
13/05/14



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