23/05/2014

ALBERTO GONÇALVES

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A arte de ser português

Os portugueses são pessoas ou números? Ou empresas? A rapaziada ligada ao futebol, numa cedência ao materialismo mais cego, não tem dúvidas: as pessoas que se lixem. No "rescaldo" (belo conceito) do jogo entre o Benfica e o Sevilha, a questão que indignava a maioria dos comentadores indígenas prendia-se com as supostas infracções cometidas pelo guarda-redes dos espanhóis quando dos penáltis falhados pelos portugueses. Sucede que o espanhol em causa é português e os portugueses em causa são estrangeiros. E se, num mundo ideal, não haveria nacionalismo nenhum, num mundo de nacionalismos toleráveis os comentadores estariam do lado do conterrâneo. Já no estranho mundo da bola, os comentadores, justamente por alegado amor ao País, preferem os brasileiros, paraguaios e sérvios do Benfica, que, aliás, utilizou tantos ou tão poucos portugueses quanto o Sevilha. Suponho que depois sejam estes patriotas a criticar a mudança fiscal do Pingo Doce para a Holanda. 

Porém, a final da Liga Europa ou lá o que é não se ficou por aqui no que respeita à arte de ser português. Dado que o Benfica perdeu, inúmeros especialistas trataram imediatamente de descobrir as razões pelas quais o Benfica não merecia perder. Além das tais infracções do guarda--redes, houve ainda uma resma de penáltis por assinalar, a "maldição" de Béla Guttmann, as misteriosas simpatias do presidente da UEFA, a presença de um príncipe espanhol na tribuna de honra do estádio (pesado contraponto, presume-se, a um autarca e um ministro na embaixada lusitana), os árbitros alemães, etc.
Contas feitas, está instalada a tese: salvo para o turismo efémero no Douro e no Algarve, os outros não gostam de nós e querem o nosso mal. Dos penáltis por marcar à conspiração dos mercados para afundar a economia caseira vai um grande salto para a humanidade em geral e um pequeníssimo passo para o português típico, habituado a responsabilizar os demais pelas próprias desgraças. Como a austeridade em vigor não resulta de sucessivas governações criminosas mas da troika, também não custa imputar o desaire da "família benfiquista" aos interesses da banca internacional - e convém não esquecer que Guttmann era judeu.

Por sorte, em última instância, ninguém nos verga: na internet corre já uma petição a reclamar a repetição do jogo. Se, por pressão do príncipe, de Platini e da sra. Merkel, a petição não funcionar, pode-se sempre convertê-la numa angariação de fundos de modo a oferecer ao Benfica a taça que vergonhosamente lhe roubaram. Há uns 30 anos, a "família portista" fez o mesmo após mais uma derrota injusta e uma vitória moral, a moral de uma história velha de séculos. Na bola e no resto.

Domingo, 11 de Maio
Acredite se quiser
O partido LIVRE, diz a Wikipédia, "distingue-se de outros partidos portugueses pela forma de organização interna. Em particular, o método de selecção dos seus candidatos às eleições a que se apresenta, segue o formato de primárias abertas, que rompe com a tradição de escolha de candidatos por convite de direcções partidárias. Deste modo, todos os cidadãos eleitores podem ser candidatos, desde que se revejam nos princípios fundadores do LIVRE". 

O texto acima, de belo conteúdo e deficiente gramática, destaca o principal motivo de orgulho do partido fundado pelo ainda eurodeputado Rui Tavares. O próprio Dr. Tavares, aliás, também reafirmou em tempos e em múltiplas entrevistas a importância das "primárias" abertas, que poriam em pé de igualdade, por exemplo, o proprietário de um quiosque na Baixa da Banheira e qualquer elemento do núcleo original desta irreverente associação política. Só por si, as "primárias" abertas constituíam a prova do desapego do Dr. Tavares pelo cargo em Estrasburgo, já que tamanha aversão a elites e cliques tornaria praticamente impossível a elegibilidade do senhor.

Isto passou-se há meses. Há dias, com o atraso de quem nunca votou para o Parlamento Europeu e não será desta vez que tenciona dedicar cinco minutos ao assunto, descobri que afinal o cabeça de lista do LIVRE é - sentem-se bem - o Dr. Tavares. Trata-se de uma coincidência espantosa: num universo de milhões de potenciais candidatos, a escolha recai justamente no único português cuja nomeação é susceptível de levantar suspeitas sobre a seriedade e, já agora, a liberdade do LIVRE. A atenuante é a circunstância de, tudo somado e a acreditar nas sondagens, o Dr. Tavares continuar com as mesmas hipóteses de ser eleito que o proprietário do quiosque na Baixa da Banheira. 

Terça-feira, 13 de Maio
A democracia ilimitada
José Vítor Malheiros, um senhor que escreve no Público, escreveu, um destes dias, sobre as "europeias": "O espectáculo da campanha vai ser triste, mas o que será mais desolador será ver a quantidade de votos que os partidos do Governo vão, apesar de tudo, recolher, ilustrando as limitações da democracia."
De facto, a democracia assim não vai a lado nenhum. Enquanto o povo não for educado ou não se proibir o voto nos "partidos do Governo" (tradução: na "direita"), de acordo com o que aconteça primeiro, nunca atingiremos o "domínio da real alternativa e da construção de uma sociedade mais justa" (decorre do artigo que o PS, cuja prevista vitória será - cito - "desoladora", também não serve).
Bem vistas as coisas, o que é que queremos: uma democracia limitada ou ilimitada? Todos em coro, agora: ilimitada, claro! Ora então é muito fácil. Basta que os cidadãos abdiquem de votar ou pelo menos não votem sem antes perguntar ao Sr. Malheiros em qual quadradinho devem pôr a cruzinha. Parece impossível que ainda ninguém se tivesse lembrado antes de uma solução tão evidente e capaz de, num ápice, acabar com as injustiças, a desigualdade, a corrupção, a propaganda, a dívida, o atraso de vida e, de caminho, a escolha popular, tudo catástrofes que deprimem o pobre Sr. Malheiros, sinónimo do déspota esclarecido. E esclarecedor. 

Quarta-feira, 14 de Maio
Estado de embriaguez
Para evitar equívocos, esclareço que sou praticamente abstémio. Apanhei os pifos necessários - e alguns suplementares - na idade devida, leia-se os últimos anos da adolescência e os primeiros em que nos recusamos a ser adultos. Em 2003, na despedida de solteiro de um amigo, despedi-me da alegria etílica com uma recaída voluntária, épica e isolada. Hoje, bebo apenas água porque gosto, porque as minhas entranhas são sensíveis desde o berço, porque vi pelo menos dois conhecidos literalmente enlouquecerem de amor pela garrafa e porque até o vago prazer de dois dedos de vinho tinto me foi retirado por aquelas reportagens televisivas em que sujeitos solenes agitam copos durante cinquenta minutos.
Após esta introdução demonstrativa da minha pureza, posso afirmar com legitimidade que fiquei satisfeito perante o fracasso dos regulamentos que visavam vedar aos menores de 18 anos o consumo de bebidas "espirituosas" e aos menores de 16 o consumo de qualquer bebida alcoólica, incluindo, presumo, o anis escarchado. Há um ano, saiu a lei. Na semana passada, saiu a constatação do respectivo enxovalho: ao que parece, os meninos e as meninas arranjam sempre maneira de fintar o zelo estatal e acabar a noite de rastos. Ainda bem.
Por um lado, logo que não se aliviem à porta aqui de casa, é saudável que os meninos e as meninas gastem as figuras tristes na época propícia. Embora nenhum dos casos me diga respeito, prefiro o estudante liceal que, por pressão dos pares, despacha oito shots de vodka como se não houvesse amanhã (e no dia seguinte ele próprio gostaria de poder tomar essa opção) ao veterano que, por vergonha, esconde a garrafa de Gordon"s no autoclismo. Tentar espremer a vida não é igual a tentar esquecê-la.
Por outro lado, o principal é que a derrota da lei significa um revés nos esforços do Estado para velar por nós. Às vezes, é óptimo ver o zelo de quem manda deparar com o desprezo de quem obedece. Não fosse assim, e há muito estaríamos transformados em zombies eternamente abaixo da maioridade. Ou, o que é pior, nas abencerragens com "consciência cívica" que o Dr. Sampaio tanto reivindicava. Entre o respeito pela ASAE e o desrespeito pelo fígado, a escolha não custa. Nem espanta que, segundo as Estatísticas Mundiais de Saúde 2014, os portugueses acima dos 15 anos ocupem o 11.º posto no ranking dos alcoólatras da Terra. Brindemos a isso, com eventuais reticências. E com Luso, se não se importam.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
18/05/14



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