23/12/2013

LÉLIA NUNES

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Ensaio o amor não diz se é para sempre, o filme de Tânia Lamarca 
Um presente de Natal

Assisti o mais recente trabalho da cineasta Tânia Lamarca e amei! Daí a razão de escrever este artigo. No entanto, não vou me debruçar sobre a biografia da cineasta catarinense, nascida ali do outro lado da ponte, no bairro de Capoeiras. Também, não vou me estender enaltecendo a sua inegável trajetória profissional com produção cinematográfica significativa e respeitada, muito menos as qualidades da diretora de reconhecido mérito no País que, em 1997, dirigiu seu primeiro longa-metragem, Buena Sorte, premiado no Festival de Gramado e no Festival de Miami e, em 2001, encantou o público e a crítica com o longa infantil Tainá: Uma aventura na Amazônia, filme que recebeu catorze prêmios, sendo doze internacionais, dos quais dez como o Melhor Filme ficção. Um percurso de conquistas e de muitas lutas da admirável mulher produtora, roteirista e diretora catarinense que, nos anos setenta, deixou a terra natal, Florianópolis, para vencer no eixo cinematográfico Rio-São Paulo.

Se o Natal já está nas ruas e praças a deslumbrar a vista e a nos seduzir com seu valor simbólico extraordinário, se as cidades respiram o clima mágico da época e adentram dezembro de dias luminosos e noites de verão deliciosas embaladas pela brisa suave que vem do mar, o novo filme de Tânia Lamarca, Ensaio – o amor não diz se é para sempre, que fez seu lançamento nacional no último Festival do Rio e que estreou nos últimos dias de novembro em Florianópolis, Joinville, Porto Alegre, São Paulo e Curitiba, seguindo para Foz do Iguaçu e Rio de Janeiro na semana passada, desagua como uma chuva dadivosa e chega apresentando uma arte cinematográfica de grande qualidade e beleza estética. Sem dúvida, Tânia Lamarca oferece-nos um belo presente de Natal antecipado.

Começo por adjetivar a Direção de Arte e o Figurino de Óscar Ramos, a Cenografia de Zeno Petry e Márcia Passos, a linda trilha sonora composta pelo maestro e pianista André Heller, fotografia belíssima de MarxVamerlatti enfim, todos os componentes artísticos e técnicos que a alma sensível da cineasta captou com acuidade do olhar e, cuidadosamente, espelhados em cada cena, ou no ritmo e sintonia dos corpos em movimento de dança.

Cabe ressaltar que Tânia Lamarca além da direção, assina a produção e o roteiro do filme Ensaio – o amor não diz se é para sempre. Seu enredo narra os bastidores de uma companhia de dança contemporânea que ensaia o espetáculo “Amores Raros” sobre a saga épica da destemida Anita Garibaldi (1821-1849) e seu amor por Giuseppe Garibaldi (1807-1882), o revolucionário italiano que, durante a Revolução Farroupilha, navegou até Laguna, proclamou a República Catharinense. Ali, à beira mar, conheceu Ana Maria de Jesus Ribeiro, a Anita Garibaldi – mulher amante e guerreira, companheira de todas as lutas até morrer aos 28 anos de idade, na Itália. Uma mulher que, premida entre a tradição e a paixão, entre o presbitério e o pecado, largou tudo, rompeu com seu pequeno mundo e seguiu Garibaldi, passando à história como “a heroína de dois mundos”– a mulher transformou-se num mito, e o mito colocou à sombra a mulher. O contexto histórico não é pano de fundo para desenvolver o enredo e sim o “ensaio”. Na verdade, a fascinante trajetória e o amor de Anita Garibaldi é o conduto do espetáculo de dança Amores Raros.

São personagens centrais da trama: Eva (Anita) e Daniel (Garibaldi) protagonizados pelos renomados bailarinos brasileiros que fazem sua estreia como atores de cinema: Lavínia Bizzotto e Bruno Cezario. Completam o elenco os atores catarinenses Chico Caprario, Antônio Cunha, Renato Turnes e, em participação especial, a atriz baiana Ingra Liberato.

Não se enganem achando que este é mais um filme sobre dança, um musical. Não é. Até poderia, se considerarmos que Santa Catarina realiza há trinta anos o Festival de Dança de Joinville de referência nacional e internacional e, hoje, considerado pelo Guinness Book o maior festival de dança do mundo pelo número de bailarinos participantes. É, sobretudo, um filme com dança contemporânea, forte e expressiva, na sua manifestação coloquial, na sua linguagem corporal cênica e dramática que supera a palavra no diálogo dos personagens, sobressaindo a imagem. Aqui, mais do que nunca, dançar é vida com toda a transversalidade possível entre seres humanos e sentimentos que se entrecruzam, não necessariamente de forma oblíqua.

“Ensaio”, filmado em Florianópolis (ilha de Santa Catarina), na histórica Laguna e em Buenos Aires (Argentina) em pleno inverno sulista sob as asas míticas do Vento Sul – Alma de ânsias e de brados,/consolador companheiro,/sinistro deus forasteiro/d’espaços ilimitados! – versos de Velho Vento, do poeta maior, o ilhéu Cruz e Sousa. Esse clima invernal que compõe o cenário paisagístico penetra por frinchas do coração desnudando os sentimentos e desvendando-os na dança apaixonante da bailarina Eva e nos conflitos que abraçam os demais personagens. “O tom, a atmosfera das cenas rodadas nos interiores tinham que dialogar com a paisagem invernal das dunas, lagoas, mares e montanhas lá fora, tinham que abraçar a solidão e as idiossincrasias das personagens”, enfatiza a diretora Tânia Lamarca.

O filme se desenrola em torno de Eva (Lavínia Bizzotto), personagem focada na sua carreira e na expectativa de dançar a história de Anita Garibaldi que, por ardil do destino, vive uma tórrida paixão secreta por Daniel (Bruno Cezario), sedutor bailarino argentino que interpreta o papel de Garibaldi no espetáculo Amores Raro, colocando em xeque o sonho profissional, o ápice da carreira por qual tanto buscou com determinação. Durante os ensaios o casal de bailarinos extravasa na dança, no vibrante movimento corporal, todo o seu tormento e conflitos pessoais: Eva, o drama da paixão, o enfrentamento de uma gravidez indesejada e a difícil decisão do abortar – sonhos e vida, e Daniel, a inesperada gravidez da parceira que faz emergir a dor de ser uma das crianças nascidas nos calabouços da ditadura militar argentina. Uma história que o bailarino esconde de si mesmo, por não saber quem ele é de fato, que não verbaliza, apenas dança numa entrega absoluta, trazendo à cena o que o coreógrafo Renato Vieira conceituou como “a dramaticidade da condição humana”.

O enredo do longa Ensaio – o amor não diz se é para sempre compreende uma esmerada visão existencialista, das relações interpessoais que gravitam no mundo circundante em que o arguto olhar de Tânia Lamarca, uma observadora reflexiva do tecido social, explorou com extrema sutileza na construção do filme, deixando emergir os dramas secretos e evocando sentimentos próprios da natureza humana na arquitetura dos demais personagens integrantes da companhia de dança – produtor, diretor, bailarinos e camareira.

Na coreografia da “morte de Anita” a performance dos bailarinos Eva (Lavínia Bizzotto) e Daniel (Bruno Cezario) é simplesmente deslumbrante. O foco intenso de luz centrado nos bailarinos dançando, enquanto o restante do cenário permanece nas sombras, numa inspiração da arte pictórica do italiano Caravaggio (1571-1610) causa impacto, emociona. A atriz bailarina Lavínia Bizzotto dança impregnada pelas personagens de Eva e Anita como se uma fosse extensão da outra, ou vice e versa. Dança o limite da vida das suas personagens, fortemente e suavemente, como uma deusa, ou melhor, como a musa da dança Terpsícore. Sua dança é mesmo de tirar o fôlego.

Aplaudo o filme Ensaio de Tânia Lamarca, um mundo transverso que surpreende na ousadia da proposta que não faz qualquer concessão nem julgamentos, tão somente deixa fluir o sentir pleno que mantém hipnotizado o público fascinado com o vocabulário poético expresso na magia da dança sensual e erótica de Eva/Anita e na trama, que estabelece uma ponte de intimidade, de cumplicidade entre as duas mulheres amantes – a bailarina e a heroína – na vivência intensa do amor romântico ou na sua desconstrução, apontando outras formas de amar.
Afinal, o amor não diz que é para sempre.

IN "AÇORIANO ORIENTAL"
19/12/13

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