A pobreza fica-lhes tão bem
Ao mesmo tempo que Portugal empobrece sem paralelo,
há uma certa classe que acha isso tão natural como respirar e que não
prescinde de o afirmar em alto e bom som. É óbvio que a opinião vincula
quem a dá e nisso não vem mal nenhum ao mundo.
Mas da mesma forma que é antural a liberdade de expressão, é também
legítima a reacção que, neste caso, é preciso que seja audível e
facilmente decifrável. Uma ideia à força de ser repetida torna-se algo
natural, uma espécie de paisagem familiar que aos poucos se instala como
coisa própria, uma segunda pele que vai cobrindo a primeira até que se
torna única e primordial.
Esta ideia da pobreza ser algo natural e até inevitável choca-me. E
choca-me ainda mais profundamente quando a vejo ser veiculada por gente
que não sabe, de mote próprio, o que é empobrecer, mesmo que tenuamente.
Choca-me que a presidente do Banco Alimentar Contra a Fome considere
natural que as pessoas não possam comer bife todos os dias, ou que até
queiram comer todos os dias. Choca-me que ache natural e aceitável que
alguém já não possa regressar ao mercado de trabalho aos 45 anos.
Choca-me que diga que o povo viveu acima das suas possibilidades, quando
o seu problema pessoal mais grave parece ser o facto dos filhos lavarem
os dentes com a água a correr na torneira.
Gostaria de saber se Isabel Jonet acharia natural que os seus filhos
não puedessem comer bifes todos os dias, ou que não tivessem casa onde
existem torneiras e água a correr, ou que não tivessem acesso à escola,
ou que não tivessem brinquedos este Natal, nem livros por onde estudar,
nem pais com emprego, nem esperança, nem dignidade, nem sonhos, nem algo
a que chamar vida.
É que falar da pobreza dos outros é tão confortável, tão natural
porque não nos contamina, porque os pobres ficam lá nesse reduto de onde
não se regressa, porque é natural que assim seja, porque temos de
aceitar que será assim, porque não pode ser de outra maneira.
Aliás, a opinião de Jonet é tão natural como a opinião de Ulrich,
para quem o povo aguenta ainda mais austeridade. E esta naturalidade
vem-lhes de dentro, de uma convicção profunda num mundo desigual, onde
existem os pobres e os ricos que farão, com toda a certeza, o favor de
os amparar numa caridade controlada o suficiente para os deixar vivos
ainda, mas não de pé, na posição que permite sonhar e avançar, na
posição que os torna homens de pleno direito e com direitos. Vivos, mas
não erguidos ao ponto de serem capazes de pensar que, um dia, podem
viver acima das suas possibilidades.
A pobreza fica-lhes tão bem, porque será sempre a pobreza dos outros,
a pobreza da massa anónima que não come bifes, que não tem emprego e
que, sobretudo, não tem voz para contrapor à naturalidade com que falam
do que verdadeiramente não conhecem.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
11/11/12
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Por vezes as palavras não são ouvidas com a intenção com que foram proferidas. Não me parece chocante que Isabel Jonet tenha dito que o povo viveu acima das suas possibilidades. Será que não é verdade? E também não me parece que uma pessoa que tem consagrado parte da sua vida a gerir uma enorme dádiva para os mais carenciados, segundo a autora do artigo, "fale do que verdadeiramente não conhece".
ResponderEliminarCriticar o que não se conhece é que me parece bem mais fora da realidade.
Claro que não é verdade. Acredita mesmo nessa patranha? Ou gosta muito da Isabel Jonet?
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