29/05/2011

25 - ILUSTRES PORTUGUESES DE SEMPRE »»»padre himalaya

 
Manoel António Gomes, mais conhecido como Padre Himalaya – alcunha herdada dos seus tempos de Seminário –, nasceu em Cendufe em 1868. De espírito curioso e inquisitivo, o Padre Himalaya cedo demonstrou o desejo de viajar. Viveu na Alemanha, em França, na Inglaterra, nos EUA e na Argentina.

Com as suas viagens pretendia não apenas alargar conhecimentos, mas sobretudo conseguir apoiofinanceiro e institucional para os seus muitos projectos.
Antes de se mudar para Paris, em 1899, viveu no Porto onde trabalhou como Professor de Físicoquímica. Este foi um período importante na vida do Padre Himalaya que publicou inúmeros artigos científicos em revistas especializadas.
Os seus interesses, as suas leituras e os seus textos versavam sobre áreas tão diversas como a Ciência, a Ecologia, a Educação, a Filosofia, a Religião ou a Economia. Em 1908, num Congresso
realizado em Viseu, o Padre Himalaya centrou a sua intervenção na fraca produtividade do país, um tema ainda hoje muitíssimo actual. No início do século XX, o Padre Himalaya via na Educação a solução para este problema económico:
O problema fundamental que o homem de governo tem de resolver em Portugal é o de promover a instrução e educação do povo sobre uma base essencialmente prática e utilitária, ensinando-o a trabalhar com esmero e rapidez, isto é, a produzir tanto, tão bom e tão barato como produzem os seus irmãos estrangeiros. (Himalaya apud Rodrigues 1999: 160)

Com efeito, o Padre Himalaya defendia a necessidade imperativa de se ultrapassar, em Portugal, o abismo existente entre pensadores e trabalhadores, e reconhecia, desta forma, a importância de se investir numa educação global que facultasse aos cidadãos portugueses as ferramentas necessárias para articular todas as facetas da vida humana, assegurando-se assim, no futuro, o seu bem-estar e a sua felicidade.
O Padre Himalaya foi ainda um homem prático e liberal no que à Religião diz respeito. Nas muitas cartas endereçadas ao seu irmão Gaspar, revelava invariavelmente o seu espírito progressista. Não
apenas se opunha à imposição do celibato, como também desaprovava outros sacrifícios defendidos pela Igreja Católica, como por exemplo os jejuns, que, segundo o sacerdote, só serviam para afastar os fiéis da
Igreja.
De resto, Himalaya sempre conjugou a sua Fé Religiosa com um profundo optimismo e um grande entusiasmo face à Ciência. Acreditava que o conhecimento e a prática científicos, juntamente com a educação, deveriam conduzir a uma democratização dos recursos naturais e à construção de um mundo que, sendo ecologicamente sustentado, é também mais feliz.
Audaz, Himalaya nunca hesitava perante novos desafios científicos, o que o levava a participar como cobaia nas suas próprias investigações. E foi, precisamente, ao experimentar um dos seus medicamentos que adoeceu seriamente, acabando por vir a falecer em 1933, sem ter terminado o seu livro sobre a Mecânica do Universo.

I. Himalaya e os Desafios da Ciência
 
O Padre Himalaya tinha apenas dezassete anos quando construiu uma máquina que conseguia transformar nitrogénio com o objectivo de aumentar os índices de fertilidade do solo. A patente do invento
não foi, todavia, registada por Himalaya e, alguns anos mais tarde, um cientista alemão registou a patente de uma máquina em tudo semelhante à do jovem cientista português.
Mais tarde, o interesse do Padre Himalaya pelas propriedades medicinais das plantas levou-o a iniciar uma investigação minuciosa que terminou com a criação de um vasto repertório de medicamentos naturais. Um destes medicamentos – os Sais Orgânicos – foi comercializado com sucesso na época.
Himalaya era, aliás, um crítico acérrimo da Medicina Tradicional e dos jogos económicos que esta fomenta, como se depreende das suas notas à 3.ª edição do livro de Sebastian Kneipp, Tratamento pela Água (Meine Wasserkur, 1894):
Os remédios da medicina clássica satisfazem os fins exactamente contrários: não têm por si mesmo virtude curativa, são caríssimos, não podem ser conhecidos pelo povo nem pela quase totalidade dos médicos. São tóxicos ou venenosos e são muitas vezes aprovados pelas academias por obra e graça do deus milhão. E finalmente são preparados por empresas industriais, vigiadas e dirigidas apenas pela sede do ouro. (Himalaya apud Rodrigues1999: 50)

Apesar do sucesso na venda dos seus Sais Orgânicos, os grandes feitos científicos do Padre Himalaya encontravam-se ainda por realizar. Em 1900, começou as suas experiências com a energia solar em França, na região de Sorède, através da construção de uma máquina que denominou de pireliófero. Este era constituído por um gigantesco forno solar com uma lente igualmente impressionante que recebia e transformava a energia solar em electricidade. Depois de algumas tentativas falhadas com protótipos imperfeitos, o Padre Himalaya conseguiu construir uma nova máquina, apresentada em 1904, na Exposição Universal de St. Louis, nos Estados Unidos, o expoente máximo da sofisticação tecnológica e científica.


O entusiasmo dos visitantes e da imprensa foi avassalador. Nas primeiras páginas dos principais jornais americanos – New York Times, Sunday Magazine, Saint-Louis Republic – não se poupavam elogios aoengenho do Padre Himalaya. Uma multidão estupefacta observava como a gigantesca máquina, que ocupava cerca de 80 m2 e alcançava os 3500 graus de temperatura, derretia instantaneamente o granito e o basalto. O Júri da Exposição atribuiu a Himalaya o primeiro prémio do concurso e com ele o cientista
português inscrevia, na primeira década do século XX, o seu nome, e o nome de Portugal, na história das energias renováveis.

Contudo, apesar do seu enorme êxito na Exposição, o pireliófero não chegou a ser nunca comercializado.
O aparelho era demasiado caro para ser usado na Indústria e os seus princípios eram contrários à Economia dominante baseada quase exclusivamente no consumo de petróleo.
Ainda a morar nos Estados Unidos, em Washington, o Padre Himalaya logo começou a trabalhar num novo projecto. Desta vez, tratava-se de um tipo de explosivo não poluente, fabricado através de produtos de origem vegetal e mineral, económicos e fáceis de obter. 
Chamou-lhe himalayite: Esta nova pólvora é uma mistura ternária ou quaternária composta dum clorato ou perclorato alcalino ou alcalino-terroso, dum hidrato de carbono e dum óleo apropriado.
[…]
A fabricação de Himalayite é rápida, fácil e isenta de perigos. Esta pólvora é insensível ao choque, à fricção e à trepidação. Não se altera com a luz, calor, frio ou humidade. Pode conservar-se indefinidamente, sem exigir precauções especiais.
(Himalaya apud Rodrigues 1999: 147)
Este explosivo não teve qualquer utilização bélica em Portugal. Destinou-se exclusivamente ao uso na exploração mineira, florestal e outras actividades económicas.
Já em Portugal, Himalaya conseguiu reunir apoios suficientes para criar uma empresa que iniciou a produção de himalayite em 1911. Estes explosivos foram usados em inúmeras campanhas de reflorestação. Serviam para abrir os buracos onde as novas árvores eram plantadas. Para além do pireliófero e da himalayite, o Padre Himalaya foi ainda o inventor de um motor directo e de um turbo-motor, uma farinha alimentar à base de crustáceos e farelo, e um sistema de reciclagem e transformação de esgotos em adubos.
Por tudo isto, não será um exagero concluir que o Padre Himalaya foi um pioneiro no domínio da inovação científica, tendo inaugurado, em Portugal, há cerca de cem anos atrás, o conceito de desenvolvimento ecologicamente sustentado.

II. Himalaya, o Visionário

A vida e a obra do Padre Himalaya, aqui expostas de forma necessariamente breve, tornam claro que nele convergem as facetas de grande pensador e de inabalável homem de acção. À semelhança de outrosutópicos, que “praticam uma política do dia-a-dia, focada na invenção e na descrição dos contratos sociais que inspiram a criação de um ambiente em que as capacidades latentes que conduzem à felicidade individual podem ser realizadas” (Gordon 2005: 363, minha tradução), o Padre Himalaya acreditava que a
humanidade possui todos os recursos indispensáveis para a promoção de uma sociedade mais justa e mais solidária. Cabe ao ser humano reunir conhecimentos, coragem, energia e imaginação suficientes para o fazer.
O tempo em que a utopia era entendida como um ideal a conquistar ou um lugar perfeito a descobrir encontra-se já no passado. Há muito que a utopia reivindica o seu papel essencial enquanto força motriz de uma transformação social que se quer constante, progressiva. Há muito que os utopistas defendem a necessidade de o ser humano se reinventar diariamente para consigo reinventar também a realidade através de acções efectivas como aquelas que temos vindo a observar no percurso invulgar do Padre
Himalaya.


Himalaya foi, sem dúvida, um homem de acção que lutou sempre para colocar os seus ideais progressistas e liberais, os seus inventos tecnológicos e as suas descobertas científicas ao serviço de todos, sem excepção. Mas foi também um visionário que ambicionava decifrar os códigos secretos da Natureza e um filósofo prático, cujas inúmeras propostas, formuladas, por vezes, num tom profético, permanecem verdadeiramente actuais e inovadoras. Permito-me ainda destacar o interesse do Padre Himalaya por um tema que é hoje, mais do que nunca, actual: a importância de uma alimentação saudável por oposição aos efeitos nocivos que uma dieta desequilibrada invariavelmente provoca, não apenas no dia-a-dia de cada indivíduo, mas no desenvolvimento da sociedade no seu todo. Para Himalaya, apoiante da Sociedade Vegetariana do Porto (cf. Vieira 2006), uma alimentação que se quer saudável não poderá, em circunstância alguma, incluir o consumo de animais:
Está demonstrado, pela ciência antropológica, que a espécie humana se definha e extingue em todas as grandes cidades do mundo, no fim de 3, 4 ou 5 gerações. […] As causas deste fenómeno são extremamente complexas. Ocupa o primeiro lugar a impureza do ar respirado onde abundam inúmeras poeiras e micróbios patogénicos e venenos ainda mal conhecidos, resultantes da excessiva aglomeração humana.
Vêm em seguida os defeitos da alimentação que, em vez de ser pura[,] é constituída principalmente por produtos de origem animal. (Himalaya apud Rodrigues 1999: 158)
As palavras de Himalaya vão assim ao encontro dos princípios defendidos pelo escritor Ângelo Jorge –membro da Sociedade Vegetariana do Porto – que, na Novela Naturista Irmânia, faz uma apaixonada apologia do Naturismo/Vegetarianismo:
A gentil filhinha de Manfredo e Violeta, traço de união entre Passado e Presente, entre a Falsa Civilização e a Nova Civilização Humana, era o símbolo consolador do Futuro. Por isso, muito justamente, teve nome de Futurina. Nos olhos pulcros daquela criança forte, sã, lindíssima, criança que era verdadeira representação simbólica do triunfo do nascente Naturismo aliado ao Espiritualismo mais puro e às mais rasgadas ideias de Liberdade Social – brilhava uma luz divina e ofuscante, luz do Amor, – como os seus lábios inocentes balbuciavam a toda a hora um cântico infantil à beleza da Vida e à vitória da Verdade e do Bem!... (Jorge 2004 [1912]: 111)
Como sublinha José Eduardo Reis, na sua introdução à edição de 2004 de Irmânia, a “aplicação prática dos princípios do naturismo /vegetarianismo” e a “divulgação do conteúdo daquela doutrina terapêutica e dietética e dos seus efeitos ao nível da saúde individual e colectiva, situam-se […] na esteira das preocupações sociais e humanas de Ângelo Jorge” (2004: 20). Na verdade, ambos, Ângelo Jorge e Padre Himalaya, se inscrevem numa tradição utópica de forte preocupação face ao valor e ao simbolismo daalimentação. Como refere Vita Fortunati,
Food is an essential aspect of the semiotics of the utopian novel and the eating of one food rather than another acquires a moral meaning. Thus, in Utopia, for example, whereas the eating of meat (impure food) needs some justification, not so the consumption of milk and wheat, which are natural foods, linked to nature’s cycles, and thus pure and healthy foods, therefore recommended for longevity. (Fortunati 2000: 267)

De resto, para lá da preocupação evidente com a saúde humana, impõe-se, no meu ponto de vista, realçar que as palavras do Padre Himalaya, transcritas anteriormente, sublinham o seu respeito
incondicional por todos os seres vivos, denunciando e criticando abertamente uma prática que revela ainda o fraco desenvolvimento moral do ser humano e uma atitude de arrogância perante os restantes animais que com ele partilham o espaço do planeta Terra.
Em suma, o Padre Himalaya foi, de facto, um pensador completo. Pensou a Ciência, a Medicina, a Economia, a Religião, a Educação, a Ecologia e a Filosofia. E fez bem mais do que isso. Derrubou
fronteiras e relacionou todas estas áreas na tentativa de encontrar soluções que não fossem pontuais, parciais, redutoras, e que, pelo contrário, na sua transversalidade, obtivessem efeitos globais e
duradouros, contribuindo decisivamente para o bem comum.
Apesar da visão do Padre Himalaya, porventura demasiado inovadora e inquietante para a sua época, nem sempre ter colhido os apoios e a visibilidade desejáveis, o seu legado intelectual e científico constituem um património riquíssimo que o espírito solidário e verdadeiramente visionário do Padre Himalaya acumulou em benefício de todas as gerações vindouras.

IN "Márcia Lemos
(Investigadora do Projecto “Utopias Literárias e Pensamento Utópico: a Cultura Portuguesa e a Tradição Intelectual do Ocidente III”, Faculdade de Letras da Universidade do Porto)"

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