26/10/2010

ANA SÁ LOPES



A linguagem é fascista. 
Vamos proibir a palavra negociar 

O anátema nacional contra a palavra "negociação" conjuga-se, em épocas como a que vivemos, com o problema do "fascismo" da linguagem de que falava Barthes 

Em Portugal as palavras "negociação", "negociar" e todos os seus derivados são monstros assassinos de políticos em busca de afirmação, pelo menos desde que o professor Cavaco rebentou com o bloco central e em dois anos conseguiu duas maiorias absolutas e o sucesso político adjacente. Pelo menos desde essa época que no canto lusitano negociar é "capitular", "vender-se" ou, em caso desesperado, arriscar-se a ser morto por knock out no jogo político imediato. 

Não se passa isto em mais parte nenhuma do mundo, onde os povos e os partidos estão habituados a coligações - a inédita aliança governativa dos conservadores britânicos com os liberais-democratas seria inviável em Portugal, enquanto na velhíssima Inglaterra foi resolvida em três dias. É provável que sejam os restos dos 48 anos de ditadura a determinar (também aqui) os nossos fracassos e as nossas incapacidades. 

Este ridículo anátema nacional conjuga-se, em épocas esquizofrénicas como a que vivemos por estes dias (o folhetim aprova/não aprova o Orçamento), com o problema do "fascismo" da linguagem, nos termos em que Roland Barthes o punha. Na última aula no Colégio de França - publicada num livrinho de meia dúzia de páginas intitulado "Lição" - Barthes dizia que a linguagem era um instrumento "intrinsecamente fascista", não por impedir de dizer, mas por "obrigar a dizer". Para Barthes, só a literatura permitia "ouvir a língua do lado de fora do poder".

É provável que o maior desejo de Pedro Passos Coelho seja, nos dias que correm, ter a capacidade de falar a língua do lado de fora do poder, ou ter a hipótese de se exprimir em literatura - para não ser vítima do "fascismo" da linguagem política, da linguagem jornalística, da chata língua dos portugueses comuns, que o quer "obrigar" a assumir a mais temida das palavras da política de miséria nacional: a palavra "negociação". 

No dia em que aceita negociar o Orçamento, a maneira como fugiu à expressão "negociar" nas duas intervenções do dia - uma conferência de imprensa na sede do PSD e uma entrevista à TVI - foi um exemplo acabado do terror do líder do PSD de ser vítima deste "fascismo" da linguagem que o quer obrigar a pronunciar a palavra maldita, a palavra que liquida um líder da oposição que deseja ser uma alternativa de governo. Embora, desde o dia do conselho nacional, já não fuja à realidade da negociação, Passos ainda não pode pronunciar a palavra. Já é mais a semiologia - e menos a análise política - a poder explicar as trapalhadas discursivas dos últimos tempos. 

Desde o início que a situação em si, para o líder do PSD, era aflitiva: enfrentar uma coligação poderosíssima - Sócrates-Cavaco-Comissão Europeia-banqueiros-mercados internacionais-FMI e metade do PSD - era um trabalho para Hércules. Tentar evidenciar a sua autonomia no quadro de um Orçamento impossível de chumbar segundo a maioria "europeísta" seria sempre um filme de terror. O dramalhão da aprovação do PEC 2 - e o consequente "pedido de desculpas" aos portugueses - tinham transformado Passos Coelho no parceiro de tango que Sócrates julgou poder "dirigir" sempre que lhe apetecesse. E ainda que as sondagens o tivessem presenteado com números simpáticos, o risco de ficar associado era tremendo. 

Mas o que ganhou Passos Coelho em subir a parada até ao chumbo do Orçamento, rejeitando negociações, para recuar (e bem) em toda a linha? Um mistério para os próximos meses. 

Redactora principal 

IN "i" 
21/10/10

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