18/07/2010

DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA

Caso "Camarate"

A comunicação social tem noticiado ou reproduzido actos parlamentares, entrevistas ou intervenções avulsas relativas ao caso "Camarate", em que a magistratura do Ministério Público ou magistrados concretos são alvo de imputações que atingem a sua competência e probidade profissional.

Numa situação que combina a defesa de pontos de vista respeitáveis com a divulgação de versões malévolas ou grosseiramente deturpadas ou de factos objectivamente falsos, está criada, na opinião pública, uma natural perplexidade.

Na defesa da honra (artigo 84º, nº 1, do Estatuto do Ministério Público), e com o objectivo de repor a verdade, tem-se por oportuno esclarecer o seguinte:

  1. A queda do avião em que, em 4 de Dezembro de 1980, pereceram o Primeiro-Ministro, os seus acompanhantes e a tripulação, determinou, a instauração, na mesma data, de um inquérito preliminar, dirigido pelo Ministério Público e investigado pela Polícia Judiciária;
  2. Em 9 de Outubro de 1981, concluído o inquérito preliminar, um relatório da Polícia Judiciária considerava que não havia indícios de crime e que os autos deveriam aguardar, por mera cautela, a produção de melhor prova;
  3. Sobre este relatório, o procurador-geral da República, não obstante concordar com a posição da Polícia Judiciária, determinou, por despacho de 12 de Outubro de 1981, que, para que se dissipassem todas as dúvidas, as investigações deveriam prosseguir na modalidade de "inquérito público";
  4. Em 16 de Fevereiro de 1983, corroborando a posição sustentada pela Polícia Judiciária, o Ministério Público determinou que o inquérito ficasse a aguardar a produção de melhor prova;
  5. Em 15 de Julho de 1983, na sequência de trabalhos realizados pela 1ª comissão parlamentar de inquérito, o Ministério Público requereu a abertura de instrução preparatória, solicitando a inquirição dos Senhores Deputados que tinham composto aquela comissão, a fim de "esclarecerem todos os elementos novos e suplementares susceptíveis de conduzir à mais completa verdade material";
  6. A partir desta altura, o Ministério Público deixou de ter quaisquer poderes de investigação. A investigação transitou para o juiz de instrução criminal, nos termos do artigo 159º do Código de Processo Penal então em vigor, cuja redacção era a seguinte: "A instrução é dirigida pelo juiz, que poderá ordenar oficiosamente ou por promoção do Ministério Público, a requerimento da parte acusadora ou do arguido, depois de admitido a intervir no processo, qualquer diligência que julgue necessária para o apuramento da verdade";
  7. Também a partir daquela data, a Polícia Judiciária passou a actuar na estrita dependência funcional do juiz de instrução criminal;
  8. Requerida pelo Ministério Público a audição dos Senhores Deputados, aconteceu que, não obstante inúmeras insistências realizadas pelo juiz de instrução criminal, só mais de cinco anos depois, por dificuldades estranhas ao tribunal, foram completadas as inquirições, sendo certo que a Assembleia da República recusou autorização relativamente a dois depoimentos;
  9. Em 18 de Fevereiro de 1988, e não tendo ainda sido completadas, pelo juiz de instrução criminal, aquelas inquirições, o Ministério Público requereu a junção aos autos dos relatórios e actas das 1ª, 2ª e 3ª comissões parlamentares de inquérito e promoveu dez séries de diligências de que constava nomeadamente:
    1. A realização de várias peritagens, com a formulação de quesitos e a indicação de peritos, tendo em vista a despistagem de vestígios de explosivos nos destroços do avião e no vestuário das vítimas;
    2. A obtenção de esclarecimentos técnicos sobre o significado da presença de partículas metálicas nos pés do piloto e outros aspectos do foro médico-legal;
    3. A reavaliação do estudo do perfil do voo;
    4. O reexame da peritagem sobre o rasto de fragmentos.
  10. No mesmo requerimento, o Ministério Público propôs a colaboração de peritos estrangeiros. Em concreto, promoveu nova deslocação a Portugal do National Transportation Safety Board dos Estados Unidos da América do Norte e a constituição de uma equipa pericial multidisciplinar, interessando os ramos aeronáutico, de explosivos, patologia legal e radiologia forense. Sugeriu ainda o pedido de cooperação do governo inglês;
  11. O juiz de instrução criminal deferiu a pretensão do Ministério Público;
  12. Extra-processualmente, o Ministério Público solicitou ao Ministério da Justiça que fossem colocados à disposição do juiz de instrução criminal os meios financeiros necessários à investigação;
  13. Encerrada a instrução preparatória, o Ministério Público, em 8 de Maio de 1990, concluiu pela não existência de indícios de atentado mas propôs, por cautela, que os autos aguardassem a produção de melhor prova;
  14. Por despacho de 17 de Maio de 1990, o juiz de instrução criminal concordou, no essencial, com a posição do Ministério Público e decidiu que o processo ficasse a aguardar a produção de melhor prova;
  15. Concluídos os trabalhos da 4ª comissão parlamentar de inquérito, o Ministério Público (11 de Outubro de 1991) analisou o relatório e as actas e requereu a sua junção aos autos. Considerando não existirem elementos novos ou relevantes, concluiu, mesmo assim, que a Polícia Judiciária deveria proceder à recolha e ao tratamento de informação criminal com base em notícias que circulavam, ainda que sem suporte na investigação;
  16. Por despacho de 20 de Janeiro de 1992, o juiz de instrução criminal analisou a prova e determinou o arquivamento dos autos, considerando implicitamente que não se justificavam as cautelas do Ministério Público, face à inexistência absoluta de indícios de crime;
  17. Em 2 de Maio de 1995, de posse de alguns elementos relativos aos trabalhos da 5ª comissão parlamentar de inquérito, o Ministério Público requereu a reabertura da instrução preparatória e, em 5 e 10 de Maio, promoveu a realização de diligências que foram consideradas, juntamente com as que o juiz determinara oficiosamente;
  18. No decurso de 1995, familiares das vítimas foram admitidos como assistentes no processo;
  19. Em 6 de Novembro de 1995, o juiz de instrução criminal encerrou a instrução preparatória;
  20. Perante o valor e o significado das provas, globalmente consideradas, o Ministério Público promoveu que os autos continuassem a aguardar a produção de melhor prova (10 de Novembro de 1995);
  21. Os assistentes reclamaram para o Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa e para a Procuradoria-Geral da República, sendo as reclamações desatendidas;
  22. Em 17 de Novembro de 1995, os assistentes deduziram acusação particular contra quatro indivíduos, como lhes era expressamente consentido pelo Decreto-Lei nº 377/77, de 6 de Setembro;
  23. O juiz de instrução criminal abriu a instrução contraditória, em 23 de Novembro de 1995, esclarecendo que o tinha feito por imperativo legal e não por considerar que existissem quaisquer indícios de crime e indeferiu grande parte das diligências requeridas pelos assistentes;
  24. Em 9 de Janeiro de 1996, o juiz de instrução criminal, divergindo do parecer do Ministério Público, considerou prescrito o procedimento criminal contra três arguidos;
  25. O Ministério Público recorreu deste despacho, em 22 de Janeiro de 1996, tendo o Tribunal da Relação negado provimento ao recurso;
  26. Do acórdão do Tribunal da Relação, o Ministério Público recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que não conheceu do recurso (10 de Julho de 1997);
  27. Encerrada a instrução contraditória (15 de Novembro de 1996), o Ministério Público, manteve a posição anterior, no sentido de que os autos deveriam aguardar a produção de melhor prova;
  28. Em 13 de Dezembro de 1996, os assistentes deduziram acusação definitiva;
  29. Remetido o processo ao juiz competente para a pronúncia, este, em despacho circunstanciado (mais de 700 páginas), rejeitou a acusação dos assistentes, por considerar não haver nenhum indício de crime, e ordenou o arquivamento do processo (16 de Abril de 1998);
  30. Os assistentes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, para onde os autos subiram em 28 de Setembro de 1998.

31. Sendo estes os factos, é de sublinhar que:

31.1. O Ministério Público não tem poderes de investigação, no processo em causa, desde 15 de Julho de 1983, competindo exclusivamente ao juiz de instrução criminal, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou da parte acusadora, determinar a realização de diligências;

31.2. Desde a mesma data, a Polícia Judiciária tem actuado sob a dependência do juiz de instrução criminal;

31.3. O processo encontra-se em fase de pronúncia desde Abril de 1997;

32. O Ministério Público requereu as diligências que lhe pareceram convenientes e observou, no decurso dos actos, as regras do processo;

33. O Ministério Público analisou e valorou as provas obtidas pelo juiz de instrução criminal, com a devida atenção e objectividade. No essencial, mereceram-lhe concordância as decisões do tribunal. Nos pontos em que dissentiu das posições do juiz ou dos assistentes, exprimiu a sua discordância em termos jurídicos e sempre respeitosos.

34. O direito de crítica é livre.

Mas ninguém, nenhum grupo, nenhuma autoridade, nenhum poder pode obrigar os magistrados a sustentarem outros interesses que não os que os factos e a lei (analisados à luz das leges artis e da sua consciência) legitimam.

35. É lamentável que, por ignorância da lei, má fé ou desconhecimento dos factos, se produzam afirmações que, atingindo o Ministério Público, mais não visam, consciente ou inconscientemente, que exercer uma intolerável pressão sobre os tribunais;

36. Este esclarecimento é emitido nesta data, por terem chegado ao fim os trabalhos da 6ª comissão parlamentar de inquérito sem que, todavia, os resultados sejam ainda conhecidos pelo Ministério Público.

Não foi emitido antes, pelo respeito devido à Assembleia da República. Não aguardou o recebimento das conclusões do inquérito parlamentar, para que nenhum equívoco exista sobre a sua natureza e objectivos.

O protesto que lhe está imanente tem a mesma veemência que será posta:

  1. na apreciação exaustiva e rigorosa do material obtido pela 6ª comissão parlamentar de inquérito;
  2. na adopção das iniciativas processuais que os factos justifiquem;
  3. na observância estrita das disposições legais;
  4. na serenidade indispensável a uma apreciação isenta, objectiva e distanciada de falsidades e afrontas;
  5. no respeito pela independência dos tribunais e na solidariedade devida aos juizes, por formas de pressão que, por hábeis e dissimuladas que sejam, lhes são efectivamente dirigidas;
  6. em evitar que a discussão sobre a relevância criminal dos factos seja deslocada do seu lugar próprio – os tribunais.

Lisboa, 6 de Julho de 1999

O Procurador-Geral da República

Cunha Rodrigues

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