08/08/2020

RICARDO ARAÚJO PEREIRA

 Democracia e nádegas: 

um ensaio

Várias pessoas alegaram que os debates quinzenais (que são as nádegas) desgastavam a democracia (que é o sofá). Ora, eu concedo que algumas nádegas são feias.E admito mesmo que algumas nádegas são sujas. Mas, a um sofá robusto e bem mantido, não há nádegas que roubem a integridade   

O fim dos debates quinzenais com a presença do primeiro-ministro no parlamento é o equivalente político da cobertura de plástico no sofá. Algumas pessoas compravam um sofá e depois forravam-no de plástico, para que não se estragasse ou sujasse. De facto, o sofá ficava protegido, mas não se podia dizer que quem se sentasse no sofá forrado de plástico estava, de facto, a usufruir do sofá. A fria e desconfortável cobertura de plástico protegia o sofá precisamente porque impedia as nossas nádegas de contactarem com ele. E não há dúvida de que a fricção das nádegas desgasta o sofá. Sucede que o sofá foi feito para ser desgastado por nádegas. Um sofá revestido de plástico aguenta anos como se nunca tivesse sido usado porque, a bem dizer, nunca foi usado.

Não sei se o meu argumento já ficou claro. As metáforas que recorrem a nádegas são muito elucidativas mas, infelizmente, também conseguem distrair. O ponto é este: a passagem dos debates quinzenais para bimestrais é a cobertura de plástico da democracia. Várias pessoas alegaram que os debates quinzenais (que são as nádegas) desgastavam a democracia (que é o sofá). Havia duas hipóteses: robustecer a democracia ou acabar com os debates quinzenais. Optou-se pela segunda, privilegiando o asseio do sofá em detrimento do conforto das nádegas. Ora, eu concedo que algumas nádegas são feias. E admito mesmo que algumas nádegas são sujas. Mas, a um sofá robusto e bem mantido, não há nádegas que roubem a integridade.

Imagino que estas noções sejam algo complexas para leigos, mas os estudantes de Ciência Política, habituados à análise minuciosa de sofás e de nádegas, compreender-me-ão. Talvez eu consiga tornar estes intrincados raciocínios um pouco mais acessíveis com a seguinte comparação: os iogurtes têm um prazo de validade mais curto do que as explicações que o primeiro-ministro vai dar ao parlamento. Com todo o respeito pela importância dos produtos lácteos e pela fiscalização da sua salubridade, talvez a governação de um país, que também tem a capacidade de azedar, merecesse a mesma atenção e vigilância. 

 IN "VISÃO 04/08/20

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