16/05/2024

MIRIAM SABJALY

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Pelas crianças (algumas)

São invocadas frequentemente como a justificação última para uma variedade de iniciativas públicas que, na verdade, não são formuladas para elas ou com elas em mente. As crianças. Um corpo ilusoriamente homogéneo e despersonalizado (muito na linha do tão famoso agregado demográfico monolítico que são “os jovens portugueses”), arremessado de um lado para o outro no discurso político quando faz falta um fundamento mais ou menos plausível para propagandear o preconceito e o reacionarismo. É urgente combater e não menosprezar os “adversários” da família “natural, universal, e intemporal”, que atuam “umas vezes mais à luz do dia, outras vezes de um modo mais subtil e larvar, mas nem por isso menos dissolvente”, diz-nos o livro Identidade e Família, coordenado por António Bagão Félix, Paulo Otero, Pedro Afonso e Victor Gil, um eclético grupo de homens brancos e conservadores. Preservar a célula básica da sociedade — a família tradicional e heteropatriarcal — pelas crianças, está claro. É preciso refutar a “sovietização” da escola pública (o que quer que isto signifique), diz-nos Pedro Passos Coelho e a extrema-direita, à qual se assume publicamente convertido. Pelas crianças, para não comprometer a qualidade e a liberdade da sua educação, que deve ser neutra (leia-se, como nós queremos). É crítico abolir a tão ameaçadora e dominante ideologia de género, diz-nos o CHEGA!, um tal “fenómeno de insanidade mental” que está em todo lado mas que ninguém sabe bem dizer o que é. Pelas crianças. É imperativo restituir a mulher ao seu papel fundamental e apropriado, dona de nada sem ser de toda a carga e responsabilidade do trabalho doméstico e reprodutivo. Dizem-nos: sacrifica tudo, achata a tua existência, perde o corpo, o sonho, o tempo, a capacidade de duvidar e de escolher, revira-te de dentro para fora para cuidar, para servir, faz-te submissa e silenciosa e mal-paga ou não-paga e pequena, minúscula, quase nula. Fá-lo pelas crianças, as tuas, as dos outros, e até as hipotéticas, que precisam de ti assim, devota e rasa. Uma teia ingovernável de conspirações, reproduzidas uma e outra vez: pelo bem das crianças. 

Não é um argumento que pegue, porque não se estende. Uma intenção limitada, que exclui, e intencionalmente. O que devemos “às crianças” parece não só não abranger todas, como também não abranger demasiadas. Sentir um grau de responsabilidade pela geração futura e procurar cumprir esse dever de cuidado tão frequentemente invocado, ainda que abstratamente, implicaria a reivindicação energética e incessante por um cessar-fogo permanente na Faixa de Gaza, onde, desde outubro de 2023, foram assassinadas pelo Estado de Israel cerca de 14.000 crianças, e mais de 12.000 crianças ficaram feridas. Cerca de 2% da população infantil da região. Onde, por dia, 37 crianças palestinas perdem a mãe. Onde, segundo a UNICEF, cerca de 1.000 crianças viram uma ou ambas as pernas amputadas nos últimos meses. Onde dezenas de crianças se juntam em frente a um hospital para dar uma conferência de imprensa em que imploram por comida e um vislumbre de normalidade. Fazer política “pelas crianças” sê-lo-ia apenas se a agenda acarretasse a defesa dos estudantes universitários, as recém-não-crianças, a transformarem-se nelas próprias, que mesmo assim têm a coragem e a lucidez– de forma não-violenta – de se erguer contra as instituições que definem o seu futuro, e de exigir justiça pelo povo palestino, e, sobretudo, pelas crianças abandonadas e emaciadas num outro continente, a milhares de passos de distância. Fazem-no contra uma repressão policial impiedosa que considera, sem nada a seu favor, que a solidariedade, em si mesma, corrói. Fazer política “pelas crianças” seria condenar a detenção dos mais de 2.000 estudantes violentamente detidos nos Estados Unidos da América, perante o silêncio receoso dos seus representantes, e dos interesses económicos que os amparam. Fazer política “pelas crianças” seria lembrar que, a cada semana, morrem onze crianças ao tentar completar a rota migratória do Mar Mediterrâneo. E sem ir tão longe, porque por vezes as fronteiras pesam: fazer política “pelas crianças” seria lembrar que, em Portugal, duas em cada dez crianças vivem em situação de pobreza. Seria lembrar que os ocupantes de um prédio no bairro de Santa Engrácia, esquecido durante mais de uma boa década, que foram despejados, sem aviso prévio, pela PSP, criaram um centro cultural numa estrutura defunta para que as crianças, e muitos mais, pudessem brincar, aprender, conhecer o significado de “comunidade”, “reinvenção”, tanto mais, e que escasseiam recursos assim, que devem ser incentivados e apoiados, não destruídos. “Pelas crianças”, seria dizer: que merecem conforto e autorrealização, que são de valor igual e soberano. Sobretudo, que valem mais do que a propriedade. Parece pouco, mas nem todos lá estamos.

* Jurista. Trabalhou como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina e casamento forçado. Foi assessora da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira entre março de 2021 e março de 2022. Atualmente é mestranda em Direitos Humanos, dividindo o tempo entre Gotemburgo (Suécia), Bilbao (Espanha), Londres (Reino Unido) e Tromsø (Noruega).

IN "gerador.eu" -09/05/24 ..

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