23/05/2024

FRANCISCO LOUÇÃ

.


 


Uma campanha

europeia perigosa


1 O tom desta eleição europeia foi dado na semana passada quando o partido de Mark Rutte, o VVD, aceitou integrar a coligação governamental chefiada pela extrema-direita holandesa. Festejando a vitória, Geert Wilders, o chefe da extrema-direita, anunciou imediatamente que o novo governo aplicará a lei de imigração mais restritiva da Europa. Note-se bem neste facto: os liberais não só se aliam com a extrema-direita, como aceitam ficar sob sua tutela. E Rutte não é um liberal qualquer, foi um dos mais destacados dirigentes europeus nos últimos anos e vai ser o próximo secretário-geral da NATO, ele é a ponte com Washington. Ora, deste modo, o liberalismo está a tornar-se um acessório da extrema-direita. Bem pode Cotrim de Figueiredo falar de livre circulação de pessoas, o seu partido europeu convive e até se subordina aos mais violentos xenófobos.

2 A AD e também o PS dizem que as eleições são uma escolha pelo europeísmo contra o euroceticismo. O problema é que esse “europeísmo” tem como recandidata à presidência da Comissão Europeia Von der Leyen, que abre a porta a entendimentos com a extrema-direita chefiada por Meloni. Assim, a campanha desses partidos é uma mascarada: falam de regras razoáveis para a imigração, mas aprovam um Pacto que permite violar os direitos humanos e financia as máfias líbias para capturar quem tente atravessar o Mediterrâneo; falam de alargamento à Ucrânia, sabendo que a França não o permitirá pela perda de fundos agrícolas, digam o que disserem hoje os seus candidatos; falam de valores europeus, e na Holanda os liberais aceitam o mando da extrema-direita, ao mesmo tempo que o Partido Popular Europeu e os liberais preparam alianças com essa gente para as instituições europeias. A AD e o PS não são europeístas, são eurocínicos.

3 O eurocinismo e o desprezo pelos direitos humanos atinge o seu momento épico na atitude perante o genocídio em Gaza. Segundo a ONU, nos primeiros cem dias do massacre morreram mais crianças nesta invasão do que em todos os conflitos do mundo nos últimos cinco anos. No entanto, a ideia de impor sanções ao governo de Israel é recusada pela UE. O governo europeu mais poderoso, o alemão, continua a fornecer armas a Netanyahu, e convém recordar que é uma coligação dos partidos equivalentes ao PS, ao Livre e à IL. Estranha aliança, dir-se-á, mas é assim que funciona o eurocinismo e nada os separa no apoio ao massacre. Em seu nome, o governo alemão proibe e reprime manifestações ou iniciativas que se solidarizem com o povo palestino. Foi ultrapassada uma barreira e o ataque à liberdade de expressão passou a ser a forma de defesa da cumplicidade com a guerra. Nenhum dos partidos portugueses que se querem integrar nessas famílias políticas – e nelas estarão subordinadas à disciplina de voto no parlamento europeu – jamais disse uma palavra quanto ao apoio dos seus aliados europeus a Netanyahu.

4 Pode-se por isso perguntar se o Chega, candidatando um homem que se situa ainda à direita do partido e que balbucia teorias da conspiração, é o único perigo destas eleições. Seria, se não houvesse um perigo que dele decorre, a aliança da direita tradicional com a extrema-direita, como o caso dos liberais vem demonstrar. A Comissão, que agora se fez dotar de meios inauditos para intervir na gestão económica de cada país e de impor regras de austeridade, torna-se o ponto de confluência destas manobras de aproximação. Essa ameaça contra a vida europeia é a própria Comissão.

5 A campanha eleitoral tem ainda outras particularidades. A que mais me surpreende é que o Livre, que se declara europeísta, fez todos os debates televisivos sem ter divulgado o seu programa ou manifesto eleitoral. Foi o único partido nessas condições.

A extrema-direita e a sua aliança com os liberais e com a velha direita só serão vencidas se a mobilização e o voto reforçarem o Bloco de Esquerda e se a esquerda souber criar respostas populares alargadas e eficazes

6 Finalmente, nota-se que o mercado eleitoral se transformou com o reforço do Chega e que, como nas legislativas, surgem ou transformam-se partidos e personalidades para tentarem aproveitar essa vaga. O ADN é talvez o mais curioso fenómeno nesse sentido, desde a sua colagem a Bolsonaro e aos discursos neopentecostais contra os direitos das mulheres, até à sua reencarnação atual.

7 As três missões ou prioridades europeias, a paz, a aplicação de um plano climático até 2030 e os direitos sociais, são um combate difícil. No entanto, é mesmo aí que a esquerda é forte e apresenta propostas claras: retirada das tropas russas e conferência de paz, reconhecimento do Estado da Palestina e boicote a Netanyahu; redução de emissões e investimento na transição energética, com a substituição dos combustíveis fósseis; cooperação europeia na protecção dos direitos da mulheres, defesa dos salários e controlo dos juros e especulação. É nesse plano que se combaterá o eurocinismo. A extrema-direita e a sua aliança com os liberais e com a velha direita só serão vencidas se a mobilização e o voto reforçarem o Bloco de Esquerda e se a esquerda souber criar respostas populares alargadas e eficazes. É por isso que esta eleição europeia é tão decisiva.

* Professor universitário, activista do BE.

IN "ESQUERDA" -21/05/24

Sem comentários:

Enviar um comentário