08/08/2023

SANDRA BALDÉ

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Uma menina preta comum

Quanto custa a minha negritude e a sua estética?

Quanto vale a minha existência quando não sou diferentona demais, ousada demais, black girl magic demais?

Estes são os questionamentos que levanto no meu livro, Para Que Fique Bem Escurecido, quando abordo a relação da personagem principal, Kady, com o seu cabelo. Mas podemos ir mais longe e olhar para outras esferas. Quanto vale a vida e o direito à dignidade de uma pessoa preta quando ela faz o mínimo esperado e não atende a estereótipos? Ser negro é ter que ser duas ou três vezes mais cuidadoso e esforçado em tudo o que se faz para muitas vezes não se ter metade do reconhecimento e prestigio que uma pessoa branca tem sem a carga mental e física de se policiar.

Carrego até hoje na mente as chamadas de atenção que a minha mãe me fazia quando era criança. Eu e o meu irmão mais novo tínhamos que estar sempre muito bem vestidos, muito bem penteados e muito cheirosos para onde quer que fôssemos, por mais simples que a ocasião fosse, tudo para que as pessoas não tivessem motivos para nos colocar de parte e reforçar aquela ideia de que “preto é bagunça”. Afinal, as oportunidades dependiam disso.

Quando me perguntam porque não existem mulheres negras DJs, eu respondo “elas existem, só não estão no mainstream.” Existem, sim, mulheres negras no mainstream musical, mas a discrepância é gigante. E mesmo quando lá se chega, o desafio é constante. Podemos tomar exemplos como Normani, Tinashe ou Kelly Rowland. Mulheres negras talentosíssimas mas que dificilmente emplacam. Porquê? Parece que, em todo o lado, só há espaço para uma ou duas pessoas negras triunfarem. Na música, no mundo corporativo, nas campanhas de publicidade… para tudo isto há um pedaço de cotas que rapidamente se preenchem para tentar calar quem não se contenta com uma representatividade performativa.

Na minha perspetiva, sinto que quando se tem uma tez muito mais escura a validação e a feminilidade estão sempre a ser questionados. Tudo bem ser-se preta, mas não posso ter o cabelo curto se não não serei desejada, não posso ter opiniões muito vincadas se não serei hostilizada. E por aí segue. Muito embora se levantem movimentos de empoderamento dentro e fora das redes sociais, eu pergunto: será que amamos mesmo as pretas retintas de cabelo 4C? Ou para as amarmos de verdade elas precisam passar por uma gourmetização que as torna mais aceitáveis? O cabelo crespo é bonito, desde que tenha baby hairs e algum tipo de finalização ou texturização. A mulher preta é bonita, desde que seja mais clara ou tenha algum tipo de mistura para apelar ao exotismo. A mulher preta é bonita, desde que atenda ao estereótipo de peito e rabo grande. Tem de falar super bem e aceitar tudo o que se lhe é dito com diplomacia, fazer o pino, três piruetas e falar trinta línguas para que seja merecedora de oportunidades e reconhecimento.

Precisamos ter cuidado com o rumo para o qual levamos o movimento #BlackGirlMagic e os seus derivados, para não reforçar as ideias de que uma mulher negra é sobrenatural e uma mulher negra merecedora de coisas positivas tem de existir de determinada forma. Não somos fortes e guerreiras o tempo todo. Assumir isso é retirar-nos a legitimidade à falha e ao ordinário. E somos absolutamente plurais e diversas em tudo. Desde a mulher preta que não sabe dançar Afrohouse e prefere fazer um coque com o seu afro àquela que adora usar umas tranças longas e coloridas e está sempre a dar o ar da sua graça naquela festa de Afrobeats. E ainda há aquela que é os dois. Quero um mundo onde se possa viver esta verdade para todas as meninas pretas.

* Escritora, DJ, e empreendedora digital, começou o seu percurso no digital em 2013 com o blog Diário de uma Africana, uma plataforma voltada para discussões raciais & de género e para autocuidado de pessoas negras. Em 2021 autopublicou o seu primeiro livro intitulado "Para Que Fique Bem Escurecido" cujo enredo gira em torno dos desafios da mulher negra num país maioritariamente branco. 

IN "gerador.eu" - 05/08/23.

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