15/05/2023

LUÍS MONTEIRO

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A governação do PS respira
o oxigénio que emana do
namoro entre o PSD e o Chega

Se é verdade que o PSD foi completamente engolido pela chantagem que os seus partidos à direita lhe lançaram, não é menos verdade que o PS tenta aproveitar o contexto para lançar a sua chantagem e um sentimento de medo. Cabe à esquerda combater a política da via única.

Em momentos de crise política, há um fenómeno recorrente na política portuguesa. Por um lado, o Presidente da República rapidamente regressa ao seu posto de comentador político, perdendo o discernimento sobre o que está e não está dentro das suas competências. Acaba por escorregar na imensidão das suas palavras, que nunca perdem pela demora. Por outro, uma parte dos jornalistas parece ser tomada por desejos políticos que lhe tolhem a capacidade de compreensão da realidade. É por isso que, nestes períodos onde o frenesim mediático toma conta do debate, se aprende pouco seguindo os acontecimentos detalhadamente a partir dos noticiários e dos seus principais protagonistas. Demasiadas vezes ouvimos que a “classe política” (entenda-se Governo e Parlamento) vive numa bolha e que isso impede que os governantes tomem as melhores decisões. Não gosto desta análise monolítica sobre a dinâmica da decisão, mas adiante. Porém, esta trapalhada a que assistimos veio demonstrar uma tremenda incapacidade de uma parte substancial dos analistas políticos entenderem as consequências da reorganização política que o país vive nos últimos anos. Justamente porque talvez vivam, eles próprios, numa bolha onde o tema bombástico que levará à queda do Governo – não retirando gravidade ao que aconteceu – merece outro tratamento na análise, que está para lá da tensão criada entre dois responsáveis máximos.

A reação insólita que o Primeiro-Ministro lançou em resposta ao Presidente da República, desmontando o bluff em torno da dissolução, tem razões mais profundas do que a análise superficial sobre as dificuldades de Marcelo em justificar tal decisão. António Costa sabe, em primeiro lugar, que o custo político de dissolver seria enorme para Marcelo Rebelo de Sousa. As razões são conhecidas: a primeira delas prende-se com a própria vontade que o Presidente da República demonstra de um próximo governo liderado pelo PSD não precisar matematicamente do Chega. A segunda é, na verdade, o outro lado dessa mesma moeda: não existe, à direita, nenhuma solução mais estável do que o atual estado de coisas, mesmo assumindo como verossímeis as sondagens que deixam o PSD cada vez mais próximo do seu rival. A possibilidade de uma vitória do PS, apesar de perder a maioria absoluta, é grande. E é isso que devia fazer pensar as almas mais entusiasmadas com a ideia da dissolução e do tão desejado regresso da direita ao poder.

Assisti ao debate “O Outro Lado”, na RTP3. Na mesa, João Taborda da Gama questionava, estupefacto, como era possível, ao mesmo tempo, o Governo estar desgastado e só se meter em trapalhadas mas, numas hipotéticas eleições, poder voltar a vencer. A pergunta era retórica e dirigida a Carmo Afonso, que desenvolveu essa ideia, enquanto Paulo Pedroso sorria, concordando.

O debate que interessa é esse. O Governo e António Costa não têm a malha mais apertada após os lamentáveis episódios da passada semana (infelizmente). Nem Marcelo Rebelo de Sousa será tão mais interventivo comparativamente ao passado (até porque esse objetivo é de si difícil de alcançar). É a indefinição permanente que o PSD e o seu líder Luís Montenegro apresentam sobre uma futura coligação com o Chega que serve de balão de oxigénio para a atual maioria absoluta do PS. Essa estratégia suicida impossibilita o PSD de recuperar o eleitorado do “centro”, cada vez mais convertido à governação neoliberal que António Costa leva a cabo, enquanto apresenta a solução que lidera como inevitável e a sua força política como o grande partido charneira da democracia portuguesa. Apenas a título ilustrativo, e ainda sobre a miséria em que se tornou o comentário político nas televisões, convém relembrar que o Ministro João Galamba, que se prepara para privatizar a TAP, foi apresentado ao longo dos últimos dias como pertencente a uma qualquer ala de esquerda do PS, onde parece morar também Carlos César.

Se é verdade que o PSD foi completamente engolido pela chantagem que os seus partidos à direita, nomeadamente o Chega, lhe lançaram, não é menos verdade que o PS tenta aproveitar o contexto para lançar a sua chantagem e um sentimento de medo sobre o debate político e sobre quem nele votou. Cabe à esquerda combater a política da via única, do fim do debate pelas alternativas em nome de uma solução que, como se vê, não dá resposta ao aumento do custo de vida, à política dos salários miseráveis, à crise climática, ao flagelo na habitação, ao avanço de uma agenda fascizante contra minorias e direitos individuais. Não podemos aceitar a chantagem eleitoral sobre um povo que se levanta e ocupa as ruas, exigindo uma vida boa a que tem direito.

* Museólogo. Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto

IN "ESQUERDA" - 12/05/23.

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