09/04/2023

SOFIA CRAVEIRO

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Censurar livros não torna
o mundo mais justo

Temos assistido ao crescimento de uma vaga de “correções” e “substituições” de termos considerados ofensivos em obras literárias. O fenómeno está a tomar proporções absurdas em Inglaterra, onde várias obras consagradas já foram “higienizadas” para não ferir susceptibilidades. Roald Dahl, autor de Charlie e a Fábrica de Chocolate, Ian Fleming, o criador de James Bond, Agatha Christie, que assina as aventuras de Poirot e Miss Marple e Enid Blyton, autora de Os Cinco, Os Sete e Noddy, foram visados por este policiamento moralista. Enquanto nos primeiros três casos foi levada a cabo uma efetiva revisão e alteração das obras, no último os livros foram retirados das prateleiras das bibliotecas públicas de Devon e só estão acessíveis a pedido.

As justificações apontadas pelas editoras prendem-se, de um modo geral, com a necessidade de “adaptar” os textos e adequá-los aos tempos vigentes, sendo reformulados para que não ofendam ninguém. No caso dos livros infantis, a ideia é não “perturbar” as crianças.

E quem leva a cabo este trabalho de revisão? Os “sensitivity readers”, um grupo de pessoas com características distintas ao nível da proveniência geográfica, da pertença étnica, da identidade de género, de limitações sensoriais ou de mobilidade, entre outras. A sua capacidade de avaliação prende-se com as vivências pessoais que, supostamente, lhes permitem avaliar quais as passagens que devem ser alteradas ou mesmo eliminadas das obras.

No caso dos livros assinados por Dahl, o trabalho levado a cabo pela organização, de nome Inclusive Minds, mudou diversas expressões: “gordo” passou a “enorme”; “homens pequenos – em referência aos Oompa-Loompas de Charlie e a Fábrica de Chocolate – passou a “pessoas pequenas” ou apenas “pequenos”; o termo “fêmea” foi substituído por “mulher”, enquanto “rapazes” e “raparigas” são descritos como “crianças”. Já nos livros de Agatha Christie, o principal alvo deste Ministério da Verdade foram as expressões étnico-raciais. Exemplos: “nativo” foi substituído por “local”, a palavra “nigger” foi eliminada, assim como um comentário relativo a “dentes brancos” e “bonitos”.

Tudo isto é completamente absurdo e, devo dizer, até revoltante. Defender os direitos humanos não significa branquear o passado, muito menos pode significar uma retificação da arte. Não são as mudanças em obras literárias que trazem mais justiça ao mundo. É a consciencialização coletiva, a mudança de atitude e a alteração de políticas públicas. A arte é o motor que está na base de tudo isso e mudá-la é esvaziá-la de sentido.

Além disso, a ideia que as mentes atuais não podem “ser perturbadas” com expressões ofensivas não é só estúpida, como paternalista e tem subjacente a noção de que somos uma espécie de autómatos, que não sabem ler romances com espírito crítico. Chega a ser insultuoso!

A literatura é e tem de ser um espaço livre, onde expressões ofensivas podem existir, até porque servem de crítica social ou caricatura da sociedade que retratam. É olhando através das atitudes dessas personagens que podemos ter um olhar sobre nós mesmos, refletindo sobre a atitude que queremos tomar. Podemos rever-nos nelas, repugnar-nos ou deixar-nos inspirar. Esvaziar as personagens da sua autenticidade é negar ao leitor não apenas a experiência emocional que pode retirar da obra, como desconsiderar o seu discernimento.

Esta “limpeza” levada a cabo pelas editoras tresanda a aproveitamento comercial. É uma espécie de tentativa de agradar a gregos e troianos, chegando a haver edições com e sem as “ofensas”, como se a literatura fosse uma espécie de menu personalizado, em que cada cliente escolhe os ingredientes. Mascaram as ditas revisões de atitudes inclusivas, quando, na verdade, o que fazem é instrumentalizar as lutas.

A lenta consciencialização da sociedade em prol dos direitos humanos fica ridicularizada. Depois, não admira que tudo seja colocado no mesmo saco.

Um mundo sem literatura livre não é um mundo melhor. Please stop embarrassing yourselves.

* Espírito esquizofrénico e indeciso que já deu a volta ao mundo sem sair do quarto. Apaixonou-se pelo jornalismo ao integrar um jornal local teimoso e insistente que a fez perceber o quanto a informação fidedigna é importante para a vida democrática. Desde essa altura descobriu também que gosta de fazer perguntas para as quais não tem resposta. Vive entre Lisboa e a Unhais da Serra (Covilhã) enquanto escreve para diferentes títulos de jornalismo alternativo. Integra ainda o projeto Inocência, de jornalismo de investigação. Encontrou o seu caminho nesta casa chamada Gerador, onde se compromete a suar a alma em cada linha escrita.

IN "gerador.eu"-09/04/23.

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