07/03/2023

PAULO BALDAIA

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O diabo está nos pormenores

O livre arbítrio é essencial para a sobrevivência da religião, sem a culpa dos Homens sobraria a culpa de Deus e desmoronava a fé que construíram em seu nome. De igual modo, sem a infinita paciência com que é suposto Deus lidar com a miséria humana, não ficaria pedra sobre pedra neste edifício a que chamamos Igreja Católica Portuguesa. É hoje muito evidente que se confrontam duas visões muito distintas do que deve ser a Igreja. Os conservadores que não gostam de Francisco são também os que não querem uma Igreja transparente, os que se recusam a aceitar que a sua organização religiosa não carregando o pecado do mundo, tem de ser capaz de se responsabilizar pelos seus pecados.

Não se pede uma caça às bruxas, nem a culpa determinada por um dedo apontado, mas não é muito difícil determinar as condições em que um padre deve ser suspenso das suas funções e afastado do contacto com os mais jovens. Por exemplo, se o mesmo padre é apontado por mais do que uma vítima, em testemunhos separados, deve obrigatoriamente ser suspenso. É uma medida de coação que não o torna automaticamente culpado, mas defende as vítimas e diminuiu a probabilidade de haver novas vítimas.

Duas semanas depois de ter recebido o relatório da Comissão Independente, a Igreja ainda anda aos papéis. Não para encontrar a melhor forma de confortar as vítimas e fazer justiça, mas com a preocupação de salvaguardar a posição dos seus abusadores e encobridores. A conferência de imprensa que se seguiu ao plenário da Conferência Episcopal Portuguesa é toda ela um tratado. Desde a incapacidade de determinar de forma clara o que vai ser feito pelas vítimas (para lá do memorial), passando pela falta de correspondência entre a preocupação pelas vítimas que era afirmada e o descartar de responsabilidades enquanto instituição no interior da qual se cometeram os crimes, e acabando com um passar de culpas à Comissão Independente por não ter entregado uma lista de nomes acompanhada das provas que indiciam a culpa.

Parece humor negro (sem piada nenhuma, diga-se) a frase de D. José Ornelas afirmando que à Diocese das Forças Armadas não foi indicado nenhum caso de abuso sexual de menores, "até porque não tem crianças". É apenas um pormenor, mas a Igreja continua a mostrar a mais profunda falta de empatia pelas vítimas. Não chega começar os comunicados com referências às vítimas, anunciando memoriais, grupos indeterminados para prosseguir os trabalhos da comissão e depois deixar ficar os suspeitos no ativo ou antecipar a recusa do pagamento que qualquer indemnização. Serão apenas pormenores?

P.S. Entre as soluções para acabar com os abusos sexuais de menores no seio da Igreja, continua a ser apontado o fim do celibato entre os padres. Esquecem os que apontam este caminho que entre os abusadores também há homens e mulheres casados. É admissível que se olhe para os abusadores como pessoas que também precisam de ajuda, sem que se esqueça que devem pagar pelos crimes cometidos. E o celibato não deve ser imposto, é claro, mas convém não confundir a beira da estrada com a estrada da Beira. Os que tanto insistem em falar no celibato estão, também eles, a mostrar maior preocupação com os abusadores que com as vítimas.

* Jornalista

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS" - 06/03/23.

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