12/02/2023

PAULA CARDOSO

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Portugal e a arte
de observar o racismo
que não consegue ver

Dá para esperar algo de um “Observatório do Racismo e Xenofobia” tutelado por uma ministra que acredita que o "racismo não é um problema estrutural" em Portugal? Ana Catarina Mendes afirmou-o com todas as letras, numa audição parlamentar, ignorando múltiplas evidências da sua existência, algumas apresentadas por colegas de partido e até de Governo.

Por telefone, a jornalista explica-me ao que vem: está a contactar-me para saber mais sobre o “Observatório contra o Racismo e a Xenofobia”. E, por “mais”, entenda-se qualquer coisa que não seja um quase absoluto nada. Na realidade, durante a chamada, percebi que, do outro lado da linha, a única informação assenta em declarações da ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes.

Segundo a governante, a criação do Observatório envolverá um consórcio com vários centros de investigação e instituições do ensino superior, dependente da assinatura de um protocolo com uma universidade, algo que, adiantou, acontecerá "nos próximos dias".

Ana Catarina Mendes prestou essa informação no passado dia 18 de Janeiro, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, na sequência de requerimentos apresentados por PCP, BE, PAN e Livre, sobre o envolvimento de “membros da PSP e da GNR em práticas violadoras do Estado de Direito, designadamente na difusão de mensagens racistas, xenófobas, misóginas e de incitamento ao ódio”.

Antes dessa garantia, já o jornal Público avançava, a 7 de Dezembro de 2022, exactamente a mesma informação."O Observatório do Racismo e Xenofobia vai ser criado dentro de dias, através de um protocolo a assinar pela ministra adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendonça Mendes, com uma universidade portuguesa".

Dias não são meses, mas é para um par deles que caminhamos sem mais desenvolvimentos desde essa primeira notícia.

O que esperar que saia daí?, pergunta-me a jornalista, a quem explico que o Observatório é uma das medidas previstas no Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação, acrescentando que, antes de este documento ser aprovado, a sua criação já mobilizava mundos – embora sem fundos.

"Então, o que esperar que saia daí?", prosseguimos na conversa.

Respondo que talvez pouco mais do que o quase absoluto nada com que iniciámos o telefonema.

Dissonâncias estruturais

Afinal, dá para esperar algo – que não seja cosmético – de um “Observatório do Racismo e Xenofobia” tutelado por uma ministra que acredita que o "racismo não é um problema estrutural" em Portugal?

Ana Catarina Mendes afirmou-o com todas as letras, nessa mesma audição parlamentar, ignorando múltiplas evidências da sua existência, algumas apresentadas por colegas de partido e até de Governo.

Recordamos, a título de exemplo, o “Relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-racial em Portugal”,  de Julho de 2019, que teve como relatora Catarina Marcelino. Na altura deputada, a hoje vice-presidente do Instituto de Segurança Social não hesita em afirmar que  “há racismo estrutural em Portugal”.

Aliás, a também ex-secretária de Estado para a Cidadania e para a Igualdade sabe bem como se perpetuam posicionamentos do tipo enunciado por Ana Catarina Mendes. “Perdemos a oportunidade de incluir a pergunta sobre a origem étnico-racial nos censos de 2021, mantendo assim este vazio de informação que dificulta a intervenção das políticas públicas no combate ao racismo estrutural, mas que, pelo contrário, ajuda a manter o discurso negacionista”, defendeu, num artigo publicado na revista Visão.

Talvez aí resida o negacionismo desavergonhado da ministra adjunta e dos Assuntos Parlamentares, a quem prescrevemos – para ficar tudo em ‘família’ – as palavras de Mariana Vieira da Silva.

No prefácio do “Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação”, assinado no ano passado, a ministra da Presidência começou por lembrar que “continuamos a assistir diariamente e de forma generalizada a fenómenos que violam os direitos humanos”, e que são “alimentados por modelos de discriminação que se baseiam em ideias de superioridade alicerçadas em noções anacrónicas de raça, etnia, cor da pele, entre outras (…)".

Apesar de notar que “a luta contra o racismo e a discriminação é um desafio de longa data na sociedade portuguesa”, a governante assinala que agora somos mais exigentes, e expressamo-nos activamente nesse combate. “Estamos perante um problema estrutural que assenta na ignorância – pelo que devemos combatê-lo com conhecimento”, considerou Mariana Vieira da Silva, talvez identificando no Observatório uma possibilidade de mudança.

Sem destacar medidas em concreto, Mariana Vieira da Silva assinalou que, “tal como solicitado pela Assembleia da República, [o Plano] reconhece o racismo como um problema estrutural, identificando assim áreas-chave de intervenção desde a educação à segurança, justiça, saúde, habitação, emprego, recolha de dados”.

Quase um ano depois, a informação ainda não chegou a Ana Catarina Mendes, que, apesar de ter a tutela da Igualdade e Migrações, continua sem ver o racismo que existe em Portugal. Ao ponto de – importa reforçar –, afirmar o indefensável: que “não é um problema estrutural” no país. Poderá um Observatório sob sua tutela ser mandatado para combater algo que ainda está por reconhecer? Ou vai ficar a ver (e a proteger) compadrios?

*  Fundadora da rede digital “Afrolink”, é também autora da marca de livros infantis “Força Africana”, projectos criados para promover a representatividade negra em Portugal. Com o mesmo propósito, integra o formato web O Lado Negro da Força. Formou-se em Relações Internacionais, e foi jornalista 17 anos.

IN "SETENTA E QUATRO" - 01/02/23.

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