30/10/2022

MIGUEL ROMÃO

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Discurso sobre
incompatibilidades: agora
as da farmacopeia

Assustou-se a opinião pública nesta semana com o custo para os contribuintes da comparticipação pública num medicamento, originalmente criado para lidar com a diabetes, mas que estaria a ajudar no combate à obesidade. Para a diabetes, portanto, não haveria problema em o Estado pagar 90% do custo de um medicamento cujo preço por embalagem é de 120 euros, contendo apenas 4 doses. Mas, se prescrito para uma obesidade sem diabetes, isso já representaria um custo extraordinário, abusivo, impossível.

Vamos lá ver...

Das duas uma: ou a obesidade é um simples defeito moral ou é uma doença. É difícil ser por natureza as duas coisas ao mesmo tempo, se bem que há azares quase impossíveis, especialmente entre nós. Recordo até, sem grande esforço, exercícios de políticos que pareciam indiciar este duo pouco recomendável de características. Mas, aqui, estamos apenas e só na obesidade. E aí vem a Organização Mundial de Saúde (OMS) oferecer uma pequena luz: a obesidade triplicou no mundo desde 1975, é um fator de risco inquestionável de doenças cardiovasculares e de cancros, entre outras doenças, e a OMS declarava até a obesidade como uma pandemia em 1997, já há vinte e cinco anos. No ano seguinte, os EUA consideravam-na também como uma doença em si e não apenas como um fator de risco para a saúde.

A obesidade, como diversas outras doenças, pode depender, na sua intensidade e no sofrimento causado, de comportamentos individuais. Mas pode também não depender ou depender de forma apenas desprezível. Não preciso de ser médico, biólogo, psicólogo ou farmacêutico, para constatar que a obesidade é um problema individual e social e pode limitar a qualidade de vida, o desempenho profissional e a vida pessoal. E basta-me ser jurista para entender que, havendo um avanço médico que aparentemente contribui e com sucesso para a melhoria da qualidade de vida e até para o evitar ou corrigir de outras doenças, parece ser um exercício de justiça e de civilização poder disponibilizá-lo a quem não possa pagar 120 euros por 4 doses, mas possa pagar 12 euros. E que, no limite, cada prescrição concreta é uma decisão médica e não de qualquer alvoroço no Facebook. Evitar a construção de meia dúzia de rotundas e a formação de meia dúzia de avenças autárquicas por ano já permitirá assegurar, com largueza, estes custos públicos com a comparticipação deste medicamento.

Na mesma lógica, de caminho, era proibir já a carne vermelha, que pode ser causadora de cancro, os cigarros, o álcool, todo o açúcar, as gorduras saturadas e trans e, com a mão na massa, o estar acordado depois das dez da noite ou umas boas gargalhadas, que também fazem rugas e por vezes fazem-nos parecer pouco sérios, pouco eficientes e pouco produtivos e são manifesto exemplo de maleita social e de eventual desajustamento endócrino.

Se há pessoas a quem o medicamento é prescrito e é comparticipado e não têm qualquer indicação médica para tal, o problema é outro e não é moral, é legal. Mas, por favor, dispensam-se os moralismos de Estado e os episódicos puritanismos zen. Viver melhor e as pessoas sentirem-se melhor, com o seu corpo e com a sua saúde, é também um direito e faz parte de uma ideia de saúde e de sociedade. É possível dizer-se que deve ser um direito apenas exercido pelos ricos - mas, assim, já não estamos onde achamos que queremos estar, estamos já do outro lado.

* Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS" - 28/10/22.

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