16/09/2022

AFONSO DE MELO

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Pelos labirintos
 da ternura

Por pouco, por muito pouco, o meu pai não conheceu o bisneto mágico que aí vem, como não pôde conhecer a neta que lhe esbulharam por simplesmente haver sempre no mundo gente que não presta.

A tristeza tomou conta de mim e, por dentro, fiquei negro como essa noite que se aproxima, escura e macabra. Já não adianta chamar, como o fazia quando era menino, pelo meu pai no momento de ter medo dos meus fantasmas. Ele não vai voltar. Talvez tenha sido este o momento em que me tornei definitivamente homem, logo eu que nunca quis crescer e desejava morar para todo o sempre nesse mundo da mansidão da infância e que os meus pais souberam, de forma perfeita, criar à minha volta.

Percebo, agora, que não há mais regresso, não mais sol por cima dos milheirais quando mergulhávamos nas águas do Fojo, não mais o cheiro ácido da pitanga na ilha que ficava no ponto mais alto do carinho, não mais a mão que apertava a minha e a voz que me ensinava tudo de escrever e de sentir. Deixou de haver espaço para voltar, de vez em quando, a ser criança, mesmo que um deus qualquer me tenha criado para isso - “mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio?” - e procuro a suavidade do meu pai na verdade dos meus filhos, todos os três, mesmo na Francisca, que me roubaram pela perfídia de uma velha velhaca chamada Sequeira, que prefere usar o nome que fede a mafioso de Manzoni e manda na família como um capo. Por pouco, por muito pouco, o meu pai não conheceu o bisneto mágico que aí vem, como não pôde conhecer a neta que lhe esbulharam por simplesmente haver sempre no mundo gente que não presta.

Por entre esse rebotalho humano, haverá infinitamente em mim a retidão do meu pai, um orgulho que erguerei como um facho a arder na noite escura, lutando para que a Mafalda e o Afonso possam olhar nos olhos a irmã que é deles e saberem, lá no fundo, que não devemos nunca descansar enquanto não dobrarmos oBojador da crueldade. Por ti, meu pai, sábio dos sábios, a pessoa que me ensino todos os labirintos da ternura.

* Jornalista

IN "iN" - 13/09/22.

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