24/07/2022

SÓNIA DE SÁ

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Era uma vez

na incendiolândia

A atual incendiolândia é o monotema das últimas semanas em todos os canais de televisão com espaços noticiosos e existe com um – e único – propósito: chocar.

Não fosse este um período de enorme sofrimento para as pessoas que têm casas e outros bens perto de áreas florestais e este seria o período do playground do jornalismo televisivo. Sejam bem-vindos à incendiolândia.

A aversão à ausência de acontecimentos que resultem em notícia ou a tomada de assalto dos fait-divers, próprios da chamada silly season, podem ser algumas das explicações para que a performance justiceira, trágica e ensimesmada dos repórteres perto dos locais dos incêndios se torne um denominador comum a todos os canais e a todos os profissionais. Triste imagem esta do jornalismo.

O que temos, então? Imagens mais ou menos repetidas de jornalistas mais ou menos intoxicados com chamas e fumo em pano de fundo, planos fechados que impedem a contextualização do local do incêndio – o que leva a uma espécie de fogo nacional que toma conta do bom senso de qualquer cidadão que consuma estes conteúdos –, discursos jornalísticos adulterados pelo recurso permanente a adjetivações que para nada mais servem do que aumentar a sensação de insegurança junto dos recetores destas mensagens de tragédia, do grotesco e até da comédia de muito mal gosto (basta ver os casos de repórteres que são enxotados pelas pessoas em desespero a tentarem proteger os seus bens).

“Queríamos estar muito mais perto da frente ativa que vemos na imagem, mas a GNR não permitiu que passássemos daqui”, dizia um destes repórteres com aparente tendência suicida. O que traria de relevante caso o direto fosse a uns metros do incêndio?

Um repórter (ser humano que tem dificuldade em respirar no meio de fumo intenso) a tossir, com os olhos quase fechados de tão danificados, a descrever aquilo que qualquer pessoa consegue ver sem recurso a entrevistas mais ou menos ocas do ponto de vista do interesse público (sofrimento e desespero das pessoas que temem perder os seus bens e até a sua própria vida), numa coreografia auxiliada pelo enquadramento visual que privilegia o grande ou muito grande planos (aumentando exponencialmente o impacto sensitivo e reduzindo a zero a razoabilidade na exposição dos factos).

Caros jornalistas, nem todos os incêndios, felizmente, resultam na repetição de Pedrógão Grande, nem todas as pessoas dos concelhos afetados pelos incêndios estão em perigo iminente e nem todas as pessoas querem ver a sua fragilidade exposta em diretos mais ou menos vácuos e despidos de interesse público.

Esta incendiolândia é o monotema das últimas semanas em todos os canais de televisão com espaços noticiosos e existe com um – e único – propósito: chocar. O choque, que é disseminado por todos os repórteres, aumenta o artigo mais vendido pelo jornalismo contemporâneo, o medo. Este recurso por regra ao sensacionalismo é demasiado evidente na incendiolêndia. Aqui mandam os estímulos que se alimentam das emoções mais básicas do ser humano.

Posto isto, volto a questionar: que jornalismo televisivo temos? O que sai desta triste e medonha incendiolândia.

* Professora universitária, Univ. da Beira Interior

IN "O JORNAL ECONÓMICO" - 23/07/22.

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