18/05/2022

FRANCISCO LOUÇÃ

 .




O mercado passou-nos a perna

A indisfarçada impotência do Estado em relação às empresas da energia tem vindo a acentuar-se, ao ponto de estas desmentirem o primeiro-ministro até quando ele anuncia uma medida com impacto público.

Houve escândalo, mas nada que tenha impressionado, o tempo está para dramas mais graves e os nossos olhos não se desviam da guerra. Em qualquer caso, a comunicação social registou o incómodo dos automobilistas que esperaram por segunda-feira para encher o depósito, aproveitando o anunciado abatimento dos preços, para perceberem então que iam ao engano. A redução do ISP, anunciada pelo Governo como a medida fundamental para conter o preço dos combustíveis, devia ter chegado às bombas de combustíveis nesse dia, mas algumas distribuidoras notaram a possibilidade de aumentarem a sua margem e mantiveram os preços ou reduziram-nos menos do que o devido. O mercado funcionou como sabe funcionar, com o faro da oportunidade.

Quanto vale uma oportunidade de ouro?

Perante a irritante impossibilidade legal de alterar a tabela do IVA, por força dos compromissos europeus que permitem a tutela bruxelense sobre uma parte do nosso sistema tributário, o Governo escolheu baixar provisoriamente o ISP, calculando que assim substituiria o efeito de uma redução do IVA de 23% para 13%. Em consequência, o primeiro-ministro aproveitou a solenidade do Parlamento na semana passada para anunciar a queda do preço em 20 cêntimos (com a reconhecida generosidade publicitária dos Governos, somava a redução anterior da gasolina em 5 cêntimos com a atual em mais 15 cêntimos). Só que para que essa perda de receita fiscal beneficiasse os consumidores seria necessário, como é natural, que a diferença fosse totalmente transferida para o preço final. Ora, logo no anúncio da medida surgiu o alerta para o risco de manipulação dos valores, sabendo-se que a distribuição dos combustíveis está nas mãos de poucas empresas e que, por um estranho efeito de magia, a concorrência em que se enfrentariam costuma registar uma harmoniosa consonância de estratégias. O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais prometeu “muita transparência”.

Chegado o dia, ficou-se a saber que as bombas passaram a ter três tipos de preços: o anterior, de modo que essas empresas embolsaram toda a poupança no imposto; algum preço intermédio, que mais frequentemente atribuiu 4 cêntimos aos cofres da empresa, ou o novo preço, cedendo aos consumidores o que era seu e, portanto, baixando os tais 15 cêntimos na gasolina. A boa notícia é que, manifestamente, não houve aqui conspiração oligopolística. A má notícia é que, nos dois primeiros casos, o consumidor ficou a perder. Não é pouca coisa (se todas as bombas tivessem embolsado os 4 cêntimos, o ganho em cada dia seria de meio milhão de euros). As margens dispararam nesse dia. E na mesma semana, com o à vontade dos vencedores, a Galp anunciou que sextuplicou os seus lucros no primeiro trimestre do ano em relação ao período homólogo.

Segura-me, ou eu bato

Apoquentado com a perceção das diferenças de preços, o primeiro-ministro usou logo na segunda-feira de manhã a arma mais tremenda: tuitou um apelo a que os consumidores olhassem “com atenção para a fatura” e se certificassem de que “o desconto é mesmo aplicado” (e para fazerem o quê?), acrescentando que “a ASAE vai estar atenta”. A ASAE lançou um comunicado confirmando estar “atenta” e, no dia seguinte, concluiu triunfantemente que, de 200 queixas, só uma tinha provimento. Finalmente, como tudo depende do regulador, ouviu-se desta entidade a palavra definitiva: que será publicado, como é regra, um relatório trimestral que registará este assunto. O ministro do Ambiente garantiu que “não hesitará em atuar”, mas logo se verá. Como é bom de ver, o Estado fingiu falar com voz grossa e os preços ficaram na mesma, no meio de atabalhoadas justificações da Galp a respeito do câmbio do euro e dos preços internacionais.

A indisfarçada impotência do Estado em relação às empresas da energia tem vindo a acentuar-se, ao ponto de estas desmentirem o primeiro-ministro até quando ele anuncia uma medida com impacto público e que lhes terá sido comunicada em tempo próprio, para mais no auge dos seus lucros. Se há nisto uma lição, é que o sistema regulatório é anedótico, pois são as empresas dominantes que determinam os preços. No gráfico abaixo verificará que a situação não é nova. Segundo as contas do FMI, que inquiriu 900 mil empresas em 27 países e ao longo de década e meia em todos os sectores, houve um grupo de empresas, as 10% mais poderosas, que subiram os preços quando queriam, faculdade que usaram com abundância (mais 35%), ao passo que as restantes não os conseguem alterar. Isto é o mercado, uma assimetria de poder que determina o valor das margens de lucro.

O mercado funciona? Pois aqui está, funciona mesmo. Mas funciona como ele é realmente, um sistema em que a produção, a remuneração e a distribuição do rendimento são determinadas por quem manda, usando as armas da ilusão e da desigualdade. E quem manda não é quem elegemos. Não há nisto nenhuma magia liberal, é mesmo assim que funciona a economia que valoriza a acumulação antes do respeito pela lei.

* Professor universitário. Activista do Bloco de Esquerda

IN "EXPRESSO" - 06/05/22.

Sem comentários:

Enviar um comentário