05/02/2022

JOÃO VILLALOBOS

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Em defesa da felicidade

Precisamos de outros acontecimentos que nos animem, de preferência antes que a Rússia e a NATO desatem à estalada na Ucrânia e os ecrãs se encham de outras bazucas que não aquela de que tanto temos ouvido falar e nos deveria disparar notas de 500 euros, se ainda existissem (sabiam que o Banco de Portugal destruiu 950 milhões de euros em notas de 500? Boa sorte a explicarem isso aí em casa)   

Por vezes parece que, em torno de nós, tudo conspira para que deixemos de prestar atenção à sabedoria intrínseca desses prazeres minúsculos de que falava Philipe Dellerm. Elude-nos a consciência do que os sentidos nos dão, no exato momento em que recebemos as suas dádivas: o aroma e o calor nas mãos do pão quente comprado de madrugada, o som do amolador que as velhas asseguram prenunciar a chuva com a sua flauta de Pã – “Ó Pã! Iô Pã!” – ou essa delicada e elusiva cor das japónicas camélias, lembrando Torga no seu ‘Diário’: “O dia foram as camélias e as trepadeiras que plantei com meu Pai. Poucas vezes, nestes trinta anos, me senti tão uno, tão certo, como junto daqueles setenta a plantar árvores. Porque meu Pai, assim magro e assim debruçado sobre a terra, enche de paz e de confiança a inquietação mais desvairada”.

Foi um bocado política a mais, nestes dias que passaram. Ainda há quem esteja com stress pós-traumático de tanto debate e discurso pré-eleitoral e já estamos na rodinha bota fora dos nomes que virão a seguir. Um bombardeio de palavras em torvelinho, lúcidas e úteis muitas delas mas outras tantas desvairadas, essas deixando-nos na mente uma moinha que é aquele pó a que se reduz uma substância seca e serve para nada. Acrescendo que, como se não bastasse, a vida também corre mal ao Benfica e isso só agrava a má disposição dos páter-famílias.

Precisamos de outros acontecimentos que nos animem, de preferência antes que a Rússia e a NATO desatem à estalada na Ucrânia e os ecrãs se encham de outras bazucas que não aquela de que tanto temos ouvido falar e nos deveria disparar notas de 500 euros, se ainda existissem (sabiam que o Banco de Portugal destruiu 950 milhões de euros em notas de 500? Boa sorte a explicarem isso aí em casa).

Entretanto ,“está a morrer muita gente”, diz-me a minha mulher. O mais recente – na altura em que escrevo – foi Lauro António. Até parece que esperava a morte da Mónica Vitti, musa de Antonioni, para se reencontrar com o Criador. “Apagou-se a Mulher-Cinema” clamava um título. E no dia seguinte, zás! Um homem do Cinema foi logo atrás. Não ajudam a continuarmos bem-dispostos, estes obituários constantes. Ou então ao lado deveria tornar-se obrigatória uma coluna de nascimentos escolhidos ao acaso: “Chegaram-nos hoje o Francisco Manuel e a Maria Cristina. Ambos gordinhos e com o percentil adequado. Choraram porque já sabem que isto a partir de agora não vai ser fácil, mas passou-lhes logo. Bem hajam e parabéns aos progenitores. Se nasceram em Tabuaço, têm direito a um cheque-bebé”.

Vem na Wikipédia, e por isso só pode ser verdade, que “a felicidade é um estado durável de plenitude, satisfação e equilíbrio físico e psíquico, em que o sofrimento e a inquietude são transformados em emoções ou sentimentos que vão desde o contentamento até a alegria intensa ou júbilo”. É bom que nos esforcemos para sentir isso sempre que possível, seja mais ou menos durável. Não são da mesma opinião? Mas cá dentro, onde o sentir nos habita. E não nesse espelho distorcido da vida dos outros, instagramada, filtrada e cortada às postas. As redes sociais devem servir-nos apenas para o mesmo fim que o cozinheiro de Atisha. Quando este chegou ao Tibete levava consigo um cozinheiro, refilão e desobediente. Os monges tibetanos perguntaram a Atisha: “Por que não o envia de volta para a Índia? Podemos ser nós a cozinhar”. E para seu espanto Atisha respondeu: “Não, nem pensar! Ele não é simplesmente o meu cozinheiro; É o meu professor de paciência”. Vai-nos ser muito pedida, a paciência, nestes dias que virão. Ah, lá isso vai. Se puderem, e ainda tiverem pai, plantem com ele qualquer coisa. À falta de camélias, que sejam afetos.

* Escritor, consultor especializado em comunicação institucional e de crise, Co-founder OrbiConsulting

IN "VISÃO" - 04/02/22.

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