12/11/2021

MARGARIDA NOGUEIRA

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A urgência ambiental exige
esforços revolucionários no
 combate ao (eco)capitalismo
 

É necessária organização política e criação de espaços de debate para se construírem processos sólidos de mobilização e politização para evitar o desastre climático. Para que o exercício de tomar as ruas não seja o começo ou até o fim da luta, mas o resultado de um processo árduo de agitação popular e de trabalho de base.

São apresentadas como solução para enfrentar a crise climática, mas as mais recentes investidas do capital no ramo da transição energética têm trazido uma série de prejuízos para trabalhadores, povos indígenas e comunidades locais. Recorrendo às palavras do xamã yanomami Davi Kopenawa, evitar a queda do céu implica superar o sistema capitalista e a sua lógica destrutiva.

"⁠Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos", escreveu o Ailton Krenak no seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo

Quando, no século XIX, o naturalista e geógrafo Alexander von Humbdolt expôs os resultados dos cinco anos de expedição pela América Latina não poderia prever a dimensão da destruição ecológica que enfrentamos atualmente. Em contacto com povos indígenas, o naturalista prussiano foi capaz de captar a essência inter-relacional de diversos fenómenos à escala global, enfatizando como os fenómenos naturais, humanos, geográficos e meteorológicos se relacionam intimamente. 

Esse panorama, que desde Humbdolt vem sendo traçado e estudado por cientistas das mais variadas áreas, com maior peso crítico entre ecossocialistas, deixa claro que os setores da esquerda precisam de incorporar um sentido de urgência que se traduza em ações coordenadas a curto e médio prazos, livrando-se de impulsos desenvolvimentistas e produtivistas.

Tal não implica a inexistência anterior de preocupações ambientais entre a esquerda, institucionalizada ou não, ou no movimento operário. O desenvolvimento do movimento operário, inclusive no Portugal oitocentista, como aquilo que Paulo Guimarães designa de ludismo ambiental, está repleto de conflitos marcados pela luta ambiental. 

Este e outros exemplos implicam que, apesar de se ter desenvolvido em peso a partir dos anos de 1970, a luta ambientalista e a “consciência ecológica” têm raízes mais profundas. Raízes que não devem ser negligenciadas ao dizerem respeito a autênticos processos de lutas populares e operárias pela justiça ambiental. 

Por outro lado, o próprio conjunto de movimentos que lutam pela transição ecológica e contra as alterações climáticas precisam de incorporar uma agenda revolucionária e intransigente. Isto se quiserem ser eficazes na luta contra a degradação ambiental e contra a crise climática. A própria viabilidade e crescimento orgânico de qualquer movimento depende dessa postura para conseguir mobilizar a classe trabalhadora, na sua diversidade, e combater o fatalismo que advém do cenário pessimista da crise climática. 

Como demonstra a atual mobilização dos trabalhadores da estatal petrolífera brasileira Petrobras, que lutam contra a privatização da empresa e atuam na defesa da transição energética, um horizonte ecologicamente sustentável “precisa de incluir as pessoas”.

Além das manifestações nas ruas, é necessária organização política e a criação de espaços de debate adequados para se construírem processos sólidos de mobilização e politização. Isto para que o exercício de tomar as ruas não seja o começo ou até o fim da luta contra o desastre climático, mas sim o resultado de um processo árduo de agitação popular e de trabalho de base.

Das contradições e fluxos do capital

A primeira parte do relatório mais recente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) expõe um conjunto de dados que reforçam a necessidade de uma ação urgente e radicalmente orientada. Segundo o relatório, o aumento da temperatura média global pode ultrapassar a marca limite dos 1,5oC, apontada como meta pelo Acordo de Paris entre 2021 e 2040. 

Desde 2011 que as temperaturas têm excedido as do último período quente de longa duração, que ocorreu há 6.500 anos, igualando-se às temperaturas do período quente anterior, 125 mil anos atrás, quando o manto de gelo da Gronelândia quase desapareceu na sua totalidade.

Na Península Ibérica, segundo uma série de outros estudos, prevê-se que as ondas de calor poderão ter o dobro da intensidade em 2050, sendo que a região corre o risco de enfrentar um aumento médio de dois a três graus até 2100, ultrapassando a marca de 1,5oC. Mesmo que o aquecimento global fique estabilizado na marca limite, a incidência de eventos extremos sem precedentes históricos pode vir a fazer parte do nosso quotidiano.

Ao mesmo tempo que se vislumbra este panorama, as tendências mais recentes apontam que o capitalismo começa a realizar uma viragem estratégica para explorar e investir na “indústria verde”.

Com o aumento do recorde nos preços da energia e de metais, aliado à intensificação da exploração de lítio, a economia a economia global pode estar no auge de um “super-ciclo” de produção de mercadorias à medida que os governos se preparam para usar uma espécie de “revolução industrial verde” para retomar o crescimento económico num cenário pós-pandemia. O próprio Pacto Ecológico Europeu aponta que o investimento na transição climática “é também a nossa bóia de salvação para sair da pandemia de COVID-19”.

No entanto, é necessário perguntar: que países beneficiarão deste ciclo de crescimento económico? Como será o processo de extração de recursos necessários para a transição energética? É com foco nestas questões que as contradições do ecocapitalismo se denunciam, mas também os pressupostos e limitações do Grande Acordo Verde (Green New Deal). 

Daqui deriva, então, a importância do debate sobre transição justa fomentado pelo ecossocialismo. Trata-se de uma reflexão que se propõe a questionar a divisão internacional do trabalho, o processo histórico de dependência e as trocas ecológicas desiguais que decorrem entre o Norte e o Sul Global à luz do imperialismo ecológico. 

Tratar esta relação assimétrica entre centro e periferia do sistema capitalista envolve questionar como o Norte Global financia tranquilamente a sua transição energética enquanto a exploração de mão-de-obra e de extração de recursos e matérias do Sul Global permanecem intactas. Nos termos colocados pelo empreendimento e lógica extrativista “verde”, este processo tem deixado um rastro de devastação ambiental. A destruição de habitats e custos sociais acrescidos, sobretudo para povos indígenas, que costumam ficar fora do processo de negociação entre empresas e governos, são duas das consequências mais palpáveis.

Entretanto, e segundo a Agência Internacional de Energia, a transição energética está aquém do desejado e a produção de combustíveis fósseis caminha para níveis cada vez mais elevados. De acordo com o relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, há países que pretendem produzir cerca de 110% de combustível fóssil a mais do que seria compatível com o limite de 1,5°C. O mesmo relatório aponta que os maiores produtores de petróleo, de gás e de carvão não estabeleceram planos que respondem adequadamente ao sentido de urgência necessário para não se ultrapassar o limite estabelecido pelo Acordo de Paris.

Este contexto implica o desenvolvimento de um sentido de urgência que incentive à ação globalmente coordenada, sem ilusões para as falsas soluções apresentadas pelo mercado. Sobretudo porque o potencial colapso do “sistema petrolífero global”, segundo o estudo mais recente publicado pela Applied Energy, pode inviabilizar a transição para um sistema de energia renovável se esta não acontecer rápido o suficiente.

Desta forma, além de todos os problemas associados à exploração capitalista, que envolvem também negociações perniciosas com governos e pressões de lóbis, a grande maioria dos países e corporações persiste no investimento em energias “sujas” enquanto se promovem sobre as bases do ecocapitalismo.  

Transição climática para quem?

Um outro aspeto que revela com clareza uma série de conflitos e contradições está relacionado com o debate sobre a  transição climática e o respetivo processo de descarbonização. 

Além do “triângulo do lítio”, zona que engloba o Chile, a Bolívia e a Argentina, Portugal tem assumido, pelo menos desde 2016, um papel cada vez mais central na corrida mundial rumo à transição energética e descarbonização. Como o próprio Ministro do Ambiente e Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes, afirmou: "Queremos usar o nosso potencial de lítio para nos posicionarmos na cadeia de valor de um elemento crucial na descarbonização".

Apesar dos desafios associados à exploração do lítio em território nacional, Portugal é o país europeu com maiores reservas de lítio e o sexto a nível global, tornando-se especialmente atrativo para a União Europeia, que procura diversificar o abastecimento de lítio da Europa. 

No entanto, é necessário acompanhar de perto as mobilizações locais que se levantam contra a exploração do lítio. Estas explorações estão associadas a uma série de problemas sócio-ambientais e a interesses, não só nacionais como internacionais, que se traduzem na elaboração de medidas compatíveis com o interesse pela extração. 

"Esta corrida ao lítio leva o ministro da Economia [à data Manuel Caldeira Cabral], a avançar com uma alteração das regras para as concessões, que passa pela abertura de concurso público, dado terem surgido vários pedidos para as mesmas áreas de concessão", escreveu em 2019 o Jornal de Notícias. 

Por exemplo, Covas do Barroso poderá vir a ser o epicentro da maior mina de lítio da Europa Ocidental. No entanto, a Associação Unidos em Defesa de Covas de Barroso, criada para resistir ao megaprojeto, aponta uma série de consequências e de negligência política face às preocupações da população local

Os receios de elevados custos ambientais, associados à exploração extrativista, não são poucos entre a população: a descaracterização da paisagem, a perda de biodiversidade, o impacto na qualidade das águas, a alteração da ocupação e uso do solo, que pode gerar perdas em relação à pequena produção agrícola familiar. Também há receios associados ao desenvolvimento local e à perda de rendimentos, nomeadamente com a “ameaça severa à integridade do sistema agro-silvo-pastoril da região do Barroso”, aliados à falta de transparência nos processos de negociação e atrasos nas divulgações dos Estudos de Impacto Ambiental.

No entanto, a pressão para a não exploração do lítio não está relacionada com uma posição contrária à transição energética, mas sim a uma preocupação com os termos dessa transição e às exigências por alternativas com menor impacto sócio-ecológico.

Além disso, a transição energética também envolve uma série de tensões entre movimentos ambientalistas e os movimentos de trabalhadores organizados. 

À semelhança do panorama organizativo na Alemanha, que tem enfrentado os mesmos problemas associados a uma divisão rígida entre ativismo climático e movimento sindical, existem esforços em Portugal para superar essa dicotomia e agregar energias para promover uma transição justa.

Um dos exemplos que traduz claramente esse clima de tensão diz respeito ao encerramento da refinaria de Matosinhos da empresa Galp. O desmantelamento da unidade envolveu direta e indiretamente o despedimento de centenas de trabalhadores e a resposta foi uma série de manifestações contrárias à ação da empresa. Denunciaram as suas falsas preocupações ambientais e o cenário de insegurança que essa ação de despedimento em massa promove.

Segundo a empresa, o encerramento teve em conta o cenário global da refinação e a necessidade de concentrar operações em Sines. Apesar de num segundo plano a Galp acrescentar preocupações relativas à sustentabilidade, houve um acelerar no terceiro trimestre na refinação e venda de produtos petrolíferos. Entre abril, quando a refinaria foi encerrada, e setembro deste ano, a Galp teve um lucro de 327 milhões de euros. 

Este contexto revela que uma transição energética capitaneada por interesses privados (corroborada pelos governos em negociações unilaterais) só poderá significar uma transição climática lenta. Ou seja, a transição energética só será relevante na medida em que for possível sustentar a margem de lucro e o máximo de exploração possível – tanto de trabalhadores como de recursos naturais. 

Neste sentido, as preocupações das populações locais, dos trabalhadores e dos ativistas climáticos estão intimamente ligadas ao “como” levar a cabo a transição justa. Se é necessária uma transição urgente, é também imperativo discutir os termos dessa transição e das preocupações sobre as garantias de emprego, assim como os paradigmas usados para medir níveis de abundância e de qualidade de vida. Carlos Seixas, porta-voz do movimento SOS Serra d’Arga, traduz bem essa preocupação ao dizer que "o senhor ministro do Ambiente tem de perceber, de uma vez por todas, que só há desenvolvimento sustentável com a participação da população. A sustentabilidade não acontece por ofício do Governo, ao contrário do que o senhor ministro acha".

Entretanto, apesar de levar em conta a sucessiva tendência dos sindicatos para incorporar e elaborar planos de promoção da transição energética, como o plano de Transição Justa da CGTP, ainda há um longo caminho a trilhar para que os esforços das várias lutas se traduzam num processo que não reproduza as tendências do capitalismo extrativista. Sobretudo porque em alguns casos a luta pela “soberania nacional” pode atropelar exigências válidas do movimento climático e acabar por alimentar o produtivismo.  

A soberania nacional, sempre orientada pelo internacionalismo, deve ser construída com base em valores qualitativamente diferentes de abundância que questionem os atuais padrões de desenvolvimento e crescimento económico. Qualquer projeto de soberania construído sobre indústrias extremamente poluentes e numa lógica de produção desenfreada, ainda que enquadrada como defesa dos trabalhadores e do interesse nacional, põe em causa o próprio futuro do planeta. 

Tudo isto levanta desafios sobre as dificuldades de fortalecer o setor público no contexto da transição energética. Em Portugal, que enfrentou uma série de privatizações e concessões associadas ao setor de produção energética, esse desafio também passa pela luta pela nacionalização de amplos setores estratégicos e até pela exigência do controle de empresas por parte dos trabalhadores.Este panorama convoca noções de tática e de estratégia, uma compreensão da luta operária e da luta popular como inseparáveis. Este objetivo leva-nos a refletir sobre os limites da disputa parlamentar e da via eleitoral, de modo a construir diariamente outros processos de luta e mobilização popular – seja nas ruas, nos locais de trabalho, nas prisões, nas escolas, no campo ou nos bairros. 

Recorrendo ao exemplo de luta dos operários de Porto Marghera, em 1971, trata-se de uma luta “que não é uma afirmação do trabalho como um valor positivo, mas a sua negação. Como Mario Tronti coloca: uma luta da classe trabalhadora contra o trabalho, uma luta do trabalhador contra si mesmo enquanto trabalhador (…)”. Trata-se, num plano mais amplo, de uma luta localizada na ordem dominante que visa o rompimento com essa mesma ordem. 

Como o próprio marxismo refere, a superação da ordem dominante não partirá de um artífice governamental que porá fim à exploração e à degradação ecológica. A abolição, neste sentido, impõe a potência e a capacidade de agência das classes exploradas na construção de um mundo novo. Como caracterizou o educador popular brasileiro Paulo Freire, "é criar um poder novo que não tema ser contestado e que não se enrijeça em nome da defesa da liberdade conquistada que, no fundo, deve ser uma liberdade conquistando-se".

Nesta empreitada, a ação e a reflexão construídas continuamente pelos ecossocialistas pode trazer pistas para se avançar na luta contra a catástrofe climática sem perder de vista o horizonte revolucionário. 

Ecossocialismo para além do “ambientalismo de esquerda”

O ecossocialismo pode ser definido, segundo Sabrina Fernandes, como uma corrente de pensamento e ação orientada para a construção de uma síntese ecológica marxista que visa a superação da dicotomia entre seres humanos e a natureza. Tal definição pressupõe, também, a luta pela abolição do modo de produção capitalista. 

Assim o ecossocialismo incorpora explicitamente a necessidade de criar condições para a abolição do Estado e das classes sociais, ou seja, para transitar rumo ao socialismo.

Olhando para a história do nascimento do ecossocialismo e o balanço histórico sobre a experiência soviética, a demarcação que os ecossocialistas elaboram a partir desse período está relacionada com a necessidade de incorporar a análise marxista (sócio)metabólica nos setores da esquerda radical. Isto aconteceu num contexto em que surgiam as primeiras preocupações sobre as mudanças climáticas, assim como num período em que, desde a década de 1960, a Revolução Verde vinha tomando forma.

Assim, Kohei Saito destaca dois estádios do ecossocialismo: o primeiro diz respeito a um confronto crítico contra os movimentos e teorias verdes despolitizadas, assim como contra o ecocapitalismo. Além disso, é neste estádio que se traça um balanço histórico em relação a experiências socialistas, como a da União Soviética, onde autores como Michael Löwy apontam uma série de problemas associados ao produtivismo soviético.

Já o segundo estádio do ecossocialismo, partindo das elaborações do primeiro, é crítico de algumas das premissas dos autores que o precederam, uma vez que  também vislumbravam tendências produtivistas nas análises de Karl Marx. Assim, é a partir do segundo estádio são desenvolvidos argumentos contrários centrados no resgate e na incorporação da ecologia marxista, sobretudo a partir das leituras de Marx sobre a “ruptura metabólica”. Ou seja, o processo pelo qual, mediante a exploração intensiva da natureza, se vai gerando uma ruptura do metabolismo social com a natureza, num processo que se estende além de um tempo ou espaço delimitados. 

á Sabrina Fernandes aponta e elabora sobre um terceiro estágio do ecossocialismo, que diz respeito à centralidade das formulações dos povos do Sul Global na práxis ecossocialista. Neste estágio fazem-se ligações a uma série de epistemologias e ações políticas que se tornam fundamentais para interpelar o ecossocialismo. 

Para além dos conhecimentos acumulados desde o primeiro estágio, destaca-se a centralidade dos conhecimentos de povos indígenas e a diversidade de cosmovisões associadas ao Bem Viver, por exemplo. Há também um destaque maior para discussões associadas à soberania alimentar e ao veganismo popular. 

"Atualmente, o terceiro estágio do ecossocialismo está sendo construído a partir da práxis que lida com as contradições do sistema atual, reivindicando alternativas para começar imediatamente", escreveu Sabrina Fernandes.  "À medida que a extrema-direita avança na América Latina, é valioso entender como movimentos camponeses, indígenas e ecossocialistas têm denunciado com ousadia a exploração humana como inseparável da exploração da natureza. No esforço por alternativas radicais, esses grupos marginalizados devem ser protagonistas na construção da práxis ecossocialista."

Partindo desta contextualização, é errado associar o ecossocialismo a uma mera preocupação ecológica dentro da esquerda radical, ou mesmo localizar o ecossocialismo num projeto político liberal associado à defesa irrestrita de um Green New Deal.

Tanto o ecossocialismo se posiciona criticamente face ao Green New Deal, como, ao resgatar a ecologia marxista incorporando o materialismo histórico e dialético, não pode ser tido como uma extensão da ala progressista que defende valores ecológicos e rejeita a transformação revolucionária.

Por outro lado, o ecossocialismo é mais que uma preocupação ambiental na esquerda ao pretender integrar um projeto político orientado pela totalidade. A diversidade de projetos e proposições ecossocialistas indica, à luz de ideias qualitativamente diferentes de abundância, uma visão que relaciona todos os aspetos da vida social. Não se trata de inserir uma série de preocupações ambientais num ou outro ponto programático, trata-se da centralidade desse senso de urgência em todas as exigências.

Por todos os aspetos da vida social, e sem pretensão de esgotar o tema, entendem-se dimensões como: 1) a agricultura familiar e a importância da mulher agricultora na promoção da soberania alimentar orientada pela agroecologia; 2) as consequências socioambientais da exploração agrícola intensiva; 3) os processos de reforma agrária em perspetiva histórica e, atualmente, ao redor do mundo; 4) o direito à cidade aliado à garantia de transportes públicos gratuitos e à expansão da rede ferroviária; 5) o combate à criminalização da pobreza, sobretudo em zonas urbanas empobrecidas, em concomitância com uma reflexão sobre racismo ambiental, além do 6) fortalecimento popular de movimentos de ocupação de bens imóveis urbanos, que estão constantemente na mira da repressão policial. 

Neste sentido, o ecossocialismo enquanto práxis revolucionária tem o potencial de promover uma síntese que traduz este sentido de urgência na esquerda radical - não deve ser traduzido nos termos no imediatismo, isto é, que não reflete sobre a própria prática militante. Por ser um campo de recente desenvolvimento, é também necessário levar em conta as suas limitações e enfrentá-las honestamente em relação a outras forças políticas da esquerda.

O internacionalismo orientado pela urgência

A expansão capitalista e a catástrofe ecológica não reconhecem fronteiras. Assim, uma luta orientada para a transformação radical precisa de incorporar um sentido de urgência global aliado à solidariedade internacionalista, que se estende a outras formas de conhecer e viver. 

Do ponto de vista das reflexões ecossocialistas, falar de internacionalismo invoca os prejuízos socializados entre as populações da periferia do sistema, algo intimamente relacionado com o contínuo reforço do policiamento das fronteiras associado ao fenómeno dos “refugiados climáticos”. Trata-se de um processo violento de criminalização da sobrevivência e de novas estratégias imperialistas, orientadas pela militarização da esfera ambiental, que se legitimam ideologicamente mediante a fabricação de inimigos e da construção social da insegurança.

No cenário internacional, a “viragem verde” do capitalismo também tem ocorrido nos meandros da militarização do combate às alterações climáticas. Nos Estados Unidos têm sido criados programas que visam canalizar, progressivamente, equipamento militar para as polícias locais com a justificação de que é necessário combater a catástrofe climática. O que esse investimento implica, no entanto, é a repressão de comunidades marginalizadas e racializadas, além da criminalização da luta social face o aumento da agitação social no seguimento da morte de George Floyd. 

Além disso, é a partir do fomento da solidariedade internacionalista que se pode compreender a importância de amplificar e apoiar as ações e vozes dos povos na periferia do sistema. A própria viabilidade dos processos de transição em cada país depende dos esforços coordenados a nível global entre a classe trabalhadora e os povos oprimidos ao redor do mundo.

Seja na luta do povo palestino contra a limpeza étnica e a devastação ambiental promovida por Israel; seja na luta contra projetos extrativistas no continente africano, ou ainda na luta dos povos indígenas pelo direito à terra e à vida (que corresponde a uma luta mais ampla pelo resgate da Abya Yala), as classes exploradas e os povos oprimidos ao redor do planeta incitam este sentido de urgência que não pode mais esperar pelas falsas soluções de mercado ou pela boa vontade das forças político-institucionais. 

Ampliar a nossa visão para outras formas de criar e imaginar a vida, que escapam e fazem frente às lógicas governamentais e capitalistas, expondo as contradições do “povo da mercadoria”, é contar com a possibilidade de que ainda é possível transformar o mundo. E as palavras do escritor e professor indígena Daniel Munduruku ecoam: "Nós formamos mesmo a última fronteira de resistência que o capitalismo brasileiro ainda não conseguiu superar".

Além de constituir um “sistema de crises”, o capitalismo tem demonstrado a sua capacidade de renovação hegemónica mediante o ecocapitalismo e a promoção de valores verdes orientados pelas (falsas) soluções de mercado. Travar e denunciar esta empreitada depende de uma constelação de esforços coletivos, fortalecidos ao nível local e global, num compromisso com a transformação do sistema com uma árdua ação militante. 

* Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho. Mestranda em Antropologia Social e Cultural na Universidade de Coimbra.

IM "SETENTA E QUATRO" - 05/11/21

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