09/08/2021

ISABEL DO CARMO

 ,


 

 

Uma rapariga no 

meio de um velório

 Nós perdemos? Não. E a prova está nesta rapariga que encontrei com à vontade e desembaraço, a meio da nave da igreja, porque queria agradecer a Otelo.

A respeito do percurso político do Otelo Saraiva de Carvalho (link is external), há quem não goste dele simplesmente porque organizou e foi o elemento decisivo para o movimento que derrubou a ditadura, a qual defendiam e da qual beneficiavam. Há quem não goste alegando actos que lhe são atribuídos a partir dos anos 80 do século passado. E há quem não goste porque apoiou o movimento popular do chamado processo revolucionário. Arrisco dizer que aqueles que o rejeitam acumulam estas três perspectivas.

O apoio directo ao movimento popular e que durou cerca de um ano e meio é, no entanto, o menos descrito e cujos detalhes são mais omitidos. Todavia, pode ser aquele que mais marcou certa camada da população. Por isso descrevo a seguinte cena comovente a que tive o privilégio de assistir.

Estava o velório de Otelo a decorrer (link is external). Presentes, a família, os amigos mais próximos, os militares ainda vivos que participaram no movimento do 25 de Abril de 1974. O Fanhais tinha cantado a Grândola à capela no centro do imenso espaço da nave da igreja. Ele é o último sobrevivente dos cantores que gravaram a canção que havia de ser o símbolo da revolução. Muitos cravos, muitas flores, muita emoção. E no meio daquele grande espaço, com o ambiente das vozes baixas e do protocolo, do cuidado dos gestos, há uma rapariga/senhora, bonita, moderna, que vem ter comigo.

A rapariga disse-me então: “Eu era uma criança da Quinta da Calçada, filha da Alda. Vim agradecer ao Otelo tudo o que fez por nós.” Foi um momento luminoso naquele espaço de recolhimento, de memórias e sentimentos que se amontoavam e cruzavam. A Quinta da Calçada era um bairro de barracas que existia entre um dos extremos do Estádio Universitário e a zona de Telheiras. Tinha muitas barracas, muitas famílias, muitas crianças, muita lama. Durante o chamado Período Revolucionário, fui lá para conhecer as pessoas, organizar-me com elas, conhecer a organização. Eram sobretudo as mulheres que sobressaíam na luta e destacava-se a Alda, que constituiu uma comissão de moradores (de barracas) e foi eleita presidente. Como aconteceu com inúmeros activistas dos bairros, a Alda e outros meteram-se a caminho e foram ao Comando Operacional do Continente (Copcon), de que o Otelo, então promovido temporariamente a general, era o chefe. O Copcon, com as suas instalações improvisadas em Monsanto e com várias secções dirigidas por jovens oficiais revolucionários, era o bem amparado do povo das barracas, dos desempregados, das mães com ranchos de filhos. A todos, o Otelo e os seus oficiais recebiam e ouviam.

O novo general, o coronel Batista, o capitão Lourenço Marques, deram de frente com o país que não conheciam. O movimento revolucionário tinha sido feito para acabar com a guerra colonial, para derrubar o Poder, para lutar pela liberdade. Surgia agora e em roldão a realidade que estava por trás de tudo isso: a pobreza, a miséria, a fome, os pés descalços. E o enorme impulso de todas essas pessoas de acabar com tudo isso. Por essa razão lá estava a Alda, representando a sua comissão de moradores, e os da Azinhaga da Torrinha e os do Bairro de Angola em Camarate e os da Curraleira e os da Musgueira e os da Comissão da Ajuda. E estiveram lá as mulheres da Timex e dos lanifícios. Foi isto o Poder Popular? Foi. As pessoas que nunca tinham conhecido casa, que não tinham sapatos, que lutavam pela comida dia a dia, que trabalhavam para a noite recolherem à barraca (porque estas foram postas de pé para abrigar as pessoas que acorriam a Lisboa para trabalhar), essas pessoas ganharam voz, perderam a vergonha e o respeitinho e falaram de frente com o Poder. Ganharam dignidade e coragem. Eram gente.

Foi isto que a direita não suportou. Foi exactamente este enfrentamento de classes que os possidentes olharam como uma epidemia contagiosa. É isto que ainda hoje, nestes dias que acompanharam o desaparecimento físico de Otelo, trouxe ao de cima as adversativas –​ “Ele comandou o movimento militar que derrubou a ditadura (até já li em vez disso “o regime – não democrático”), mas” –, mas o que está por trás das adversativas e que não é pronunciado é o que descrevi atrás. É terem tido eco e voz os que não tinham voz. Por isso, a Alda e as várias Aldas daqueles bairros e fábricas gritavam “Otelo! Otelo!” nas manifestações, como lembrava a antiga menina das barracas e agora bela rapariga/senhora, voltada para o futuro.

Em relação às casas devolutas (e nunca as habitadas), o Copcon enviava militares e as Chaves do Areeiro abrir as portas e pôr fechaduras novas. E eles entravam maravilhados porque tinham um tecto para os seus “meninos”. Quanto às casas, foi impossível fazê-las durante um ano e meio. Mas nem a extrema-direita, formiga-branca que rondava, nem a rede bombista, nem as várias organizações internacionais de extrema-direita que aí andavam quebraram o ânimo das mulheres e homens dos bairros. As casas fizeram-se. Muitas na continuação do impulso e organização do arquitecto Nuno Portas, que tinha sido secretário de Estado da Habitação.

Já nos anos 80, a Alda e os seus filhos deram entrada no bairro que acolheu o pessoal das barracas, da autoria do arquitecto Hestnes Ferreira e que hoje ainda lá está junto à Segunda Circular. Quando saí da prisão preventiva em 1982 convidaram-me a ir lá e fizeram-me uma grande festa de surpresa. A Alda, que já morreu, e os seus filhos, ganharam. Nós perdemos? Não. E a prova está nesta rapariga que encontrei com à vontade e desembaraço, a meio da nave da igreja, porque queria agradecer. E em todos os outros cuja fila chegava ao Campo Santana, entre os quais uma senhora modesta e anónima, que dizia: “Ele a mim fez-me bem!”.

* Médica, professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, membro do grupo Estamos do Lado da Solução

IN "PÚBLICO" - 31/07/21

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