09/04/2021

NEVIN ALIJA

 .




Equilibrar a balança: 

mais mulheres para

 uma transição justa

A crise multifacetada trazida pela Covid-19 aprofundou ainda mais as desigualdades de género existentes e a situação de vulnerabilidade das mulheres em muitos países. 

“When I was just a little girl, I asked my mother what I would be…”

Assim como um longo caminho se inicia com o primeiro passo, as nossas visões do mundo e de nós próprios são moldadas pelas primeiras imagens que assimilamos, os papéis que nos são atribuídos, as cores que adornam as nossas roupas e as oportunidades que vemos ser proporcionadas a quem se parece connosco. Enquanto o mundo atravessa tempos tumultuosos e ventos de mudança parecem cobrir todos os domínios das nossas sociedades, é tempo de nos livrarmos dos papéis tradicionais, criarmos mais espaço para quem não o teve e mais igualdade.

A transição energética tem vindo a ser apelidada por alguns o maior desafio do nosso século. Alcançar a transformação do setor energético global, transitando dos combustíveis fósseis para a neutralidade carbónica, requer não só repensar o setor energético tradicional, como pressupõe uma viragem radical dos modelos de negócio como os conhecemos. No entanto, a transição tem-se provado difícil em alguns países, sendo necessários mais esforços para reduzir as emissões e mitigar os efeitos das alterações climáticas. Contudo, continuando as mulheres sub-representadas no setor da energia, poderá esta trajetória de maior sustentabilidade criar oportunidades para mudanças sociais profundas e maior diversidade, não só nas fontes de energia, mas também na nossa força de trabalho, distribuindo o poder de forma mais equilibrada?

Não será surpresa para ninguém que as mulheres estão claramente sub-representadas na indústria energética. Segundo um estudo da IRENA, as mulheres compõem cerca de 32% da força de trabalho no setor das energias renováveis, em comparação com 22% na totalidade do setor energético; a representação em empregos das áreas STEM é muito inferior à dos homens, assim como nos cargos de direção. A falta de equilíbrio de género é francamente visível nas posições de tomada de decisão onde, por exemplo, apenas 7,5% das posições nos conselhos de administração são ocupadas por mulheres. Os números, lamentavelmente baixos, são ainda mais reveladores se pensarmos que as mulheres, a nível global, são geralmente mais vulneráveis às mudanças climáticas e à pobreza energética. De facto, estima-se que 80% das pessoas deslocadas por efeito das alterações climáticas sejam mulheres; todos os anos, dois milhões de mulheres e crianças – quatro por minuto – morrem prematuramente devido a doenças causadas pela poluição do ar interior induzido pela queimadura de biomassa e por carecerem de meios financeiros para cobrir perdas relacionadas com as condições meteorológicas ou tecnologias de adaptação.

A urgência para agir no âmbito da inclusão no setor da energia foi claramente demonstrada pelos impactos discriminatórios da pandemia do coronavírus. A crise multifacetada trazida pela Covid-19 aprofundou ainda mais as desigualdades de género existentes e a situação de vulnerabilidade das mulheres em muitos países.  O Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE) constatou que as mulheres foram as mais atingidas, desde a perda de 2,2 milhões de empregos em toda a UE, na primeira vaga da pandemia (40% dos quais em setores com uma força de trabalho maioritariamente feminina), ao aumento do trabalho não remunerado (em média mais 7,7 horas por semana do que os homens a cuidar de crianças), resultando em menor produtividade e condicionando progressos nas suas carreiras.

Enquanto lutamos contra a pandemia do coronavírus e corremos contra o tempo para enfrentar as ameaças das alterações climáticas, do colapso da biodiversidade, da poluição atmosférica e da acidificação dos oceanos, temos de abraçar a oportunidade de tomar medidas para recuperar e reconstruir melhor. Apesar da transição energética e da evolução para energias renováveis representar uma oportunidade sem precedentes, isto não se está a traduzir na mitigação das disparidades de género. O desejo de colmatar estas disparidades não deve, contudo, esgotar-se em si mesmo. O setor da energia tem muito a beneficiar da maior representação das mulheres. Uma força de trabalho mais diversa aumenta a criatividade e a inovação e, nos cargos de decisão, as mulheres estão mais abertas a investimentos ecológicos e a responder às preocupações ambientais.

Considerar a dimensão do género no desenho das políticas de energia e na abordagem às alterações climáticas e à pobreza energética é de extrema importância. A aplicação desta perspetiva na legislação, políticas e iniciativas no domínio da energia parte do gender mainstreaming, claramente refletido na Estratégia Europeia para a Igualdade de Género. Esta prática ajudaria a identificar os diferentes impactos que o seu acesso e a utilização da energia têm sobre homens e mulheres, mas também a colmatar lacunas existentes, contribuindo para promover mais igualdade de género e melhorar a perceção e as práticas laborais. Contudo, apesar de a estratégia ser um primeiro passo, ainda há muito a fazer e as preocupações com a sua eficácia persistem, devido à falta de coerência política a nível europeu, motivação e orçamentos sensíveis ao género. Apesar do possível entusiasmo pela interseccionalidade com a área da energia, as políticas relevantes na área do clima e da energia, como a Lei Europeia do Clima e o Pacto Ecológico Europeu não integram uma perspetiva do género, não valorizando a contribuição das mulheres para a transição.

“Gender equality and women’s rights are essential to getting through this pandemic together… I urge governments to put women and girls at the center of their efforts to recover from Covid-19. That starts with women as leaders, with equal representation and decision-making power.”
António Guterres, Secretário-geral da ONU

* Doutoranda da Universidade Católica Portuguesa, área do Direito da Energia da UE, é co-fundadora e investigadora no Nova Law Green Lab, centrando-se nas áreas do Direito da Energia e do Clima. Integra a equipa que preside ao Grupo de Trabalho sobre Questões Ambientais Internacionais (WPIEI) para as Convenções de Basileia e Espoo no âmbito da Presidência Portuguesa da UE, no quadro da colaboração entre a NOVA School of Law e a Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Foi seleccionada para os Future Energy Leaders Portugal – FEL.PT 2021, uma iniciativa da Associação Portuguesa de Energia (APE) e do Conselho Mundial da Energia (WEC). Integra o Global Shapers Lisbon Hub desde Junho de 2020. 

IN "OBSERVADOR" - 06/04/21

.

Sem comentários:

Enviar um comentário