15/03/2021

VALTER HUGO MÃE

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Vacinação

Se o medo da vacina já é uma contingência, pior é sentirmo-nos no enredo de uma inteligência kafkiana.

Para muitos velhos a chegada ao centro de vacinação é o passeio de muitos meses. Reconhecem-se uns aos outros com alguma festa, cheios de dúvidas, entregues. Um nervosismo pequeno repete a mesma pergunta. Não há como acreditar na segurança da vacina e já todos ouviram falar da meia hora depois, enquanto ficarão em vigia a reacções adversas. Posto assim, sabem que pode doer, ouviram dizer que na Europa já houve gente a morrer assim. O pavilhão está calmo. Medem a esperança por essa normalidade.

Há um moço que acompanha a mãe e protesta porque Israel pagou 20 por cada vacina de dez e isso é que é ser um país, sem estar a mando de terceiros. De todo o modo, celebra a ciência e o seu resmungo é contente, ansioso como se estivesse prestes a passar a linha da meta e receber um troféu. Digo que sim a tudo. Estou sem conversa.

Em todos os passos, avisei que a minha mãe era gravemente alérgica à penicilina e ao contraste que se usa nos exames, disseram-me sempre que os protocolos não estavam a prever recusar a vacina nestes casos. Como acompanho as notícias, pareceu-me que me davam respostas abreviadas. Sossegaram-me. A acompanhar a administração do medicamento estaria um médico que faria juízo da situação. Assim que o médico ouviu dizer da alergia suspendeu a toma da primeira dose.

Estamos a ver navios. O pavilhão vai enchendo com mais gente e sabemos que consultam processos para estabelecer algum grau de perigo, mas alguém já nos disse que estes casos devem ser conduzidos à administração em ambiente hospitalar, para que todos os recursos sejam accionados em caso de reacção. A razão de não ter sido logo agendada para um hospital, pois, ninguém entende.

Estamos todos com a impressão de correr a maratona. Contudo, sinto agora que nos dizem que a meta não é no pavilhão nem é para hoje. Voltamos à abstracção em que estávamos, a saber que este e aquele vizinho já foram chamados, esta e aquela vizinha até já foram chamadas para a segunda dose, e nós aguardamos sem grande notícia e com a ansiedade típica de quem avista a praia e não lhe pode ainda meter o pé. Nadamos ao largo.

É estranho que não possa haver uma articulação maior nestas informações e que não haja maneira de nos sentirmos mais seguros. Se o medo da vacina já é uma contingência, pior é sentirmo-nos no enredo de uma inteligência kafkiana. Acabamos de receber uma “cartinha” para a médica de família. Afinal, o Centro de Saúde, que conhece as alergias da minha mãe, avaliará o reencaminhamento para a vacinação no hospital. Fico a perguntar-me que raio faltou para que essa directiva tivesse sido já dada.

Estamos três minutos depois. A minha mãe diz que algumas pessoas vão ficar esquecidas. Hoje, sei bem, vou ter de fazer conversas bonitas e brincar porque o dia vai custar a passar. Regressar à esperança. Manter a esperança. Não temos outra hipótese. Pode ser que Kafka nos imagine uma solução em breve, por caridade.

* Escritor

IN "NOTÍCIAS MAGAZINE" - 15/03/21

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