07/01/2021

PEDRO VAZ

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Tratar resíduos não é

vender caramelos

No dia de ontem, foi dado destaque, pelo jornal Público, a uma posição política da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) contra a bonificação da venda da energia elétrica resultante da valorização energética da incineração de resíduos sólidos urbanos (RSU) levada a cabo pelas Valorsul e Lipor.

Não sendo propriamente novidade, esta posição já tinha sido dada a conhecer no ano passado, acaba por ser trazida, novamente, à ribalta mediática, como se tratasse de um crime de lesa pátria, demonstrando um viés naquilo que é a defesa do interesse público em relação ao setor dos resíduos por parte dos reguladores, quer da energia, quer dos resíduos (ERSE e ERSAR).

Como já tive a oportunidade de referir publicamente, as Diretivas Europeias n.º 850/2018 e 851/2018 que alteraram as Diretivas já existentes relativas aos resíduos e à sua deposição em aterro, entretanto transpostas para o nosso ordenamento jurídico através do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, impõem ao país alterações significativas na gestão de resíduos, nomeadamente quanto à obrigação da redução significativa das quantidades de resíduos depositados em aterro e aumento de reciclagem.

As metas definidas pela União Europeia impõem um esforço adicional, ainda por quantificar, de investimento em recursos humanos, meios e infraestruturas. Implicará também, como poderemos ver pelo exemplo dos países europeus  que melhor se encontram em matéria de gestão de resíduos  urbanos, como são o caso da Alemanha e da Áustria, que, mesmo que nos próximos 5 anos se diminua a produção de resíduos e aumente a recolha seletiva e reciclagem como nunca aconteceu nas últimas décadas, a incineração fará parte do “mix” de instrumentos de uma eficiente gestão de RSU no país. Em boa hora (há 20 anos) aquando da construção das incineradoras de RSU da Valorsul e da Lipor que as unidades foram dotadas da tecnologia que permitiu que esse processo gerasse, simultaneamente, energia elétrica (cuja venda se bonificou desde aí) para introduzir na rede.

A valorização energética de resíduos é o melhor processo ambiental de tratamento de resíduos? Não, mas apesar disso é melhor que a eliminação através de aterro e melhor que apenas a queima de resíduos, pois permite gerar energia elétrica, que é melhor que a energia produzida pelo uso de combustíveis fósseis e, até, mais constante e regular que a energia de fontes renováveis limpas (espera-se que no futuro os problemas de armazenamento de energia produzida por fontes renováveis deixem de existir).

Ao contrário do que se pretende fazer crer, a bonificação da tarifa da energia vendida pelas entidades referidas não é uma benesse a um qualquer grupo económico privado ou, sequer, desproporcional em relação à política de bonificação da tarifa energética praticada no país para fontes não fósseis.

Desde logo porque a gestão de resíduos em Portugal é de titularidade pública, não podendo legalmente ser privada. Não se encontra num qualquer mercado liberalizado pontificado por privados que procuram maximizar o lucro a custo dos cidadãos e, por outro lado, a gestão de resíduos em Portugal é nos termos da legislação em vigor um serviço público essencial. Acrescente-se que a Lipor é uma associação de municípios na zona do grande Porto e a Valorsul é uma empresa constituída por municípios (com 49% do capital social) e pela empresa EGF (privatizada de forma controversa pelo governo de Passos Coelho), que gere, em concessão, o serviço público de tratamento de resíduos na zona da Grande Lisboa. Ambos os sistemas tratam da maioria dos resíduos produzidos no país e, apesar da titularidade ser pública, têm a sua atividade fortemente regulada inclusive na definição da tarifa que cobram aos seus clientes que mais não são que os municípios que as constituem.

As receitas permitidas por ambos os sistemas são as tarifas que aplicam aos seus clientes (municípios) e o produto da receita da venda dos recicláveis e da energia elétrica produzida. Tanto maior é a tarifa quanto menor for as restantes receitas, pois as regras obrigam a que os custos sejam cobertos por estas receitas, não sendo permitidos subsídios à exploração. Quanto maiores as tarifas a aplicar aos municípios pela sua atividade, maiores as tarifas que os municípios têm de aplicar aos seus munícipes a quem têm a obrigação de imputar estes custos, acrescidos da Taxa de Gestão de Resíduos a pagar à administração central (que já duplicou o seu valor para este ano) e dos custos com a recolha e encaminhamento, que os municípios também têm. Ora, se a bonificação na energia vendida deixar de existir os encargos para estes milhões de pessoas aumentará drasticamente.

Não colhe, também, o argumento que mantendo a bonificação apenas são beneficiados os residentes dos municípios que terão tarifas de resíduos mais baixos à custa dos consumidores de energia elétrica de todo o país. Não colhe, porque a todos beneficia a energia produzida por combustíveis não fósseis e os residentes dos municípios da grande Lisboa e Porto, fruto da sua atividade turística e económica, com uma população flutuante, produtora também de resíduos, bem maior que os seus residentes, terá de pagar na tarifa dos resíduos o sobrecusto que estes municípios têm com isso (mais recursos humanos e mais meios). Lisboa, a título exemplificativo, tem uma capitação de RSU produzidos bem maior que os restantes municípios do país e nada impede o país que se permita a valorização energética dos resíduos de outros pontos do país que terão de reduzir a deposição em aterro.

Por fim, estranha-se a extraordinária preocupação com o impacto dos 53 milhões de euros até 2023, de acordo com a notícia de ontem, em Parecer de 22 de outubro últimoo valor era 33,6 milhões de euros em 3 anos.  no défice tarifário energético nacional, que de acordo com a própria ERSE representa pouco mais de 1% nos mais de 1,03 mil milhões de euros de sobrecusto com renováveis. A preocupação do custo da energia produzida pela valorização de RSU que tem um preço médio de 88 euros MWh, pagos a entidades cuja tarefa é de serviço público e de titularidade estatal, é profundamente desproporcional  em relação à preocupação com o preço da energia produzida a partir de biomassa (120 euros MWh), a partir do vento (93,8 euros MWh), de pequenas centrais hídricas (97,4 euros MWh) e de fotovoltaica (298 euros MWh).

Está bom de ver que este 1% na totalidade do sobrecusto energético nacional é um valor de tal grandeza que justifique as sucessivas notícias dando conta do abuso que se está a cometer. Lamenta-se, mas a bonificação da energia vendida pelos sistemas que tratam os RSU no país não são os responsáveis pelo elevado preço da eletricidade que todos pagamos. Qual é afinal o interesse público que se quer defender com tanta acrimónia?

IN "i" -05/01/21

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