06/01/2021

HELENA ROSETA

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O escultor da vida

 Irreverência, insubmissão perante todos os poderes, memória inesgotável, sentido de humor, talento singular, arte em estado puro. João Cutileiro esculpiu a própria vida em tudo quanto fez.

João Cutileiro foi para mim um mestre antes ainda de ser um amigo como irmão. Dele recebi muitas lições de vida, da inteligência ao coração, passando pela criatividade transbordante que punha em tudo o que fazia e pelo talento incrível das suas mãos. Mãos indissociáveis dos sentimentos, desenhadoras compulsivas, perfeccionistas, extensões permanentes da inquietação do olhar que esculpe sem cessar.

Para o João, uma pedra podia ser tudo – um corpo de mulher, uma planura alentejana, uma flor com as pétalas a tremer ao vento. Ir a casa do João em Évora era uma festa. Dávamos sempre uma volta pelo estaleiro, por entre esculturas espalhadas ao ar livre no meio das máquinas e dos enormes blocos de mármore. Fascinava-me ver o escultor, coberto de pó de pedra, ansioso por mostrar as últimas novidades. O João pegava em todos os trabalhos com amor e inteligência, inovava, brincava com as cores e os veios da pedra, juntava-lhe outros materiais, montava e desmontava, talhava, burilava, passava do enorme ao minúsculo com a mesma precisão, punha no que fazia um atrevimento que desafiava os limites da matéria-prima.

A sua casa era ao mesmo tempo atelier, museu, estaleiro e mesa calorosa para receber quem viesse vê-lo. Cada divisão nos reservava uma surpresa: o quarto das minúsculas “lorelei” à beira de um penhasco, a estufa cheia de árvores de pedra cujos frutos apetecia colher, os corredores cobertos de pequenas “pinturas” de pedra com bandos de passarada, ou aquelas meninas que nos acolhiam com volúpia quando abríamos algumas portas. As pedras tinham uma vida própria quando saíam das suas mãos. E cozinhar era, como ele dizia, uma “arte maior” a que se dedicava com paixão. Comer à sua mesa, na cozinha ou no jardim, era uma partilha de amizade e alegria de viver, inseparável da ternura imensa que a Margarida espalhava à nossa volta e da calorosa afectividade do João.

Irreverência, insubmissão perante todos os poderes, memória inesgotável, sentido de humor, talento singular, arte em estado puro. Esculpiu a própria vida em tudo quanto fez. Onde quer que esteja um trabalho do João Cutileiro, estará sempre o testemunho de um português genial e único, que nos faz ter vontade de acariciar a pedra como se fosse carne da nossa carne.

 IN "PÚBLICO" - 05/01/21

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