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No andar de cima
O sr. Adérito ressonava no quarto grande. Bebemos o chá, comemos pastéis, dali a pouco rimo-nos e tornámo-nos três mulheres a fumar e a confidenciar segredos numa noite de temporal
O mau feitio do sr. Adérito salvou o 47 da Rua Damasceno Monteiro, um
bonito prédio de tabique e varandinhas de procissão, construído no
princípio do século passado. O proprietário bem tentou rentabilizar o
imóvel, deitando-o abaixo e construindo um novo, em betão, dividido em
tê-zeros e tê-uns, só que o sr. Adérito, ao contrário dos outros
inquilinos, recusou-se a receber a indemnização para se ir embora. Foi o
próprio sr. Adérito que, mais de duas décadas depois, me contou a
história, quando comprei o terceiro andar, um enorme apartamento muito
degradado. Com mais de 90 anos, o mau feitio do meu novo vizinho de cima
já só servia para atenazar a empregada que tomava conta dele, És uma
inútil, não serves para nada a não ser para me roubares o dinheiro,
ouvia-o vociferar diariamente. Empregada, não, empregadas, que a d.
Engrácia do segundo andar, uma cinquentona com sotaque madeirense,
depressa me esclareceu, Oh menina, aquilo é um corrupio, não há nenhuma
que aqueça o lugar. Vou buscar um pau para te dar uma tareia, prometia o
sr. Adérito a quase todas. A maioria é de mau porte, queixava-se a d.
Felismina do primeiro andar, uma simpática e quase surda octogenária de
Borba, Quem é que aceita receber só teto e comida em troca de trabalho? E
havia ainda vizinhos de outros prédios que garantiam, O velho já não
pode com as calças, mas anda sempre atrás delas para as apalpar.
O sr. Adérito tinha uma única filha, a Fátima, que vivia no
Canadá e vinha sempre de férias em agosto, acompanhada do seu marido, o
Carlos. Os dois reformar-se-iam em breve e planeavam viver metade do ano
em Portugal e a outra metade no Canadá, O inverno tem de ser em
Toronto, as casas aqui são uma miséria, rapa-se mais frio do que lá. A
expedita Fátima tinha comprado o quarto andar por tuta-e-meia quando o
senhorio desistiu de vez do seu plano imobiliário, É preciso saber levar
o meu pai, garantia, o problema é que em Portugal ninguém quer vergar a
espinha, no Canadá trabalha-se a sério. Vergar a espinha era uma das
suas expressões favoritas. Repetia-a a propósito das raparigas que
tomavam conta do sr. Adérito, dos operários que fizeram a recuperação do
prédio ou dos empregados dos restaurantes onde ia gastar os dólares
ganhos em Toronto. O Carlos concordava sempre com ela, mas pronunciava
Canadá em inglês.
Habituamo-nos a tudo e este talvez seja simultaneamente o maior
feito e defeito dos humanos, pelo que rapidamente deixei de dar
importância às agressões verbais do sr. Adérito que, infiltrando-se no
soalho de casquinha, chegavam até mim cruelmente amortecidas por séculos
de deploráveis hábitos e tragédias quotidianas. Quando a Carla, uma
rapariga com pouco mais de 20 anos, entrou ao serviço do sr. Adérito, já
eu me apiedara do velho que esperava a morte sentado numa cadeira de
cozinha voltada para a cidade vertiginosamente inalcançável que se
estendia à sua frente. Nas costas dele, a casa dir-se-ia a desabar,
rachas enormes nas paredes, o chão desnivelado a entortar
ameaçadoramente as ombreiras, a humidade a espalhar-se como uma cinzenta
– cada vez mais negra – trepadeira descendente.
Mata-me ou atiro-me da varanda.
O pedido gritado da Carla não era dirigido ao sr. Adérito, mas à
Dalila. Quem deveria matá-la, para que ela não se atirasse da varanda
das traseiras a que o declive da encosta dos Anjos oferecia uma altura
de mais de seis andares, era a Dalila. A Dalila mudara-se lá para cima
pouco depois de a Carla chegar. Apresentara-se como amiga, mas não
demorou muito até a vizinhança perceber que elas eram coisas. À afronta
de serem coisas juntava-se o facto de a Dalila ser cigana, o que levou
d. Felismina a pôr um sapo à porta, Pelo sim, pelo não, e a d. Engrácia a
reforçar a fechadura da marquise, Nunca se sabe.
Duplicaram, então, os gritos, já que aos do sr. Adérito, durante o
dia, juntaram-se os delas, em intermináveis discussões noturnas.
Ciúmes, disputas relativas aos rendimentos e despesas de cada uma,
ofensas de familiares, alertas astrológicos para traições em curso, tudo
servia de rastilho a gritos e choros que davam lugar, horas depois, às
pazes e ao ranger de molas da cama. Nesses anos eu tinha o hábito de ler
até tarde, o que me fez ficar a saber mais do que desejava sobre a
intimidade do casal.
Passava das duas da manhã de uma endemoniada noite de temporal,
eu estava deitada no sofá a ler O Poder e a Glória do Graham Greene,
quando, Mata-me ou atiro-me da varanda. Tive a certeza de que a Carla
falava a sério. Horas antes, eu fizera pastéis de nata, seguindo a letra
tremida da receita da avó Melita do Miguel, gastara muito tempo a
confecioná-los, a massa folhada necessitava de não sei quantas voltas,
papel vegetal e quadrados de manteiga, o creme não se ficava atrás em
cuidados. Peguei num prato de pastéis e subi as escadas, O ódio é um
fracasso da imaginação, disse-lhes pouco depois de me terem aberto a
porta, citando uma das personagens do livro que eu abandonara. A Dalila e
a Carla não puderam evitar a surpresa, mas logo se recompuseram
encolhendo de ombros, Isto são coisas nossas, não fazemos mal a ninguém.
Sentámo-nos à mesa da cozinha do sr. Adérito, um fervedor ao lume
cheio de água para o chá de camomila, o prato dos pastéis pousado sobre
uma toalha de oleado com uvas e folhas de videira. Lembro-me de que a
explicação do drama metia uma mulher que trabalhava no talho em frente e
uma boleia de um taxista, mas já não consigo refazer a história. A
cozinha estava fria, vários alguidares recolhiam a água do telhado que
haveria de ser arranjado no verão seguinte, o outono era um lobo a uivar
furiosamente pelas frinchas das portas. O sr. Adérito ressonava no
quarto grande. Bebemos o chá, comemos pastéis, dali a pouco rimo-nos e
tornámo-nos três mulheres a fumar e a confidenciar segredos numa noite
de temporal.
Aquele amor improvável no andar de cima durou até ao agosto
seguinte. A Fátima chegou e pôs tudo a andar, Era o que faltava ter
disto em minha casa.
IN "VISÃO"
04/09/20
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