16/09/2020

DULCE MARIA CARDOSO

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 No andar de cima

O sr. Adérito ressonava no quarto grande. Bebemos o chá, comemos pastéis, dali a pouco rimo-nos e tornámo-nos três mulheres a fumar e a confidenciar segredos numa noite de temporal

O mau feitio do sr. Adérito salvou o 47 da Rua Damasceno Monteiro, um bonito prédio de tabique e varandinhas de procissão, construído no princípio do século passado. O proprietário bem tentou rentabilizar o imóvel, deitando-o abaixo e construindo um novo, em betão, dividido em tê-zeros e tê-uns, só que o sr. Adérito, ao contrário dos outros inquilinos, recusou-se a receber a indemnização para se ir embora. Foi o próprio sr. Adérito que, mais de duas décadas depois, me contou a história, quando comprei o terceiro andar, um enorme apartamento muito degradado. Com mais de 90 anos, o mau feitio do meu novo vizinho de cima já só servia para atenazar a empregada que tomava conta dele, És uma inútil, não serves para nada a não ser para me roubares o dinheiro, ouvia-o vociferar diariamente. Empregada, não, empregadas, que a d. Engrácia do segundo andar, uma cinquentona com sotaque madeirense, depressa me esclareceu, Oh menina, aquilo é um corrupio, não há nenhuma que aqueça o lugar. Vou buscar um pau para te dar uma tareia, prometia o sr. Adérito a quase todas. A maioria é de mau porte, queixava-se a d. Felismina do primeiro andar, uma simpática e quase surda octogenária de Borba, Quem é que aceita receber só teto e comida em troca de trabalho? E havia ainda vizinhos de outros prédios que garantiam, O velho já não pode com as calças, mas anda sempre atrás delas para as apalpar.

O sr. Adérito tinha uma única filha, a Fátima, que vivia no Canadá e vinha sempre de férias em agosto, acompanhada do seu marido, o Carlos. Os dois reformar-se-iam em breve e planeavam viver metade do ano em Portugal e a outra metade no Canadá, O inverno tem de ser em Toronto, as casas aqui são uma miséria, rapa-se mais frio do que lá. A expedita Fátima tinha comprado o quarto andar por tuta-e-meia quando o senhorio desistiu de vez do seu plano imobiliário, É preciso saber levar o meu pai, garantia, o problema é que em Portugal ninguém quer vergar a espinha, no Canadá trabalha-se a sério. Vergar a espinha era uma das suas expressões favoritas. Repetia-a a propósito das raparigas que tomavam conta do sr. Adérito, dos operários que fizeram a recuperação do prédio ou dos empregados dos restaurantes onde ia gastar os dólares ganhos em Toronto. O Carlos concordava sempre com ela, mas pronunciava Canadá em inglês. 

Habituamo-nos a tudo e este talvez seja simultaneamente o maior feito e defeito dos humanos, pelo que rapidamente deixei de dar importância às agressões verbais do sr. Adérito que, infiltrando-se no soalho de casquinha, chegavam até mim cruelmente amortecidas por séculos de deploráveis hábitos e tragédias quotidianas. Quando a Carla, uma rapariga com pouco mais de 20 anos, entrou ao serviço do sr. Adérito, já eu me apiedara do velho que esperava a morte sentado numa cadeira de cozinha voltada para a cidade vertiginosamente inalcançável que se estendia à sua frente. Nas costas dele, a casa dir-se-ia a desabar, rachas enormes nas paredes, o chão desnivelado a entortar ameaçadoramente as ombreiras, a humidade a espalhar-se como uma cinzenta – cada vez mais negra – trepadeira descendente. 

Mata-me ou atiro-me da varanda.

O pedido gritado da Carla não era dirigido ao sr. Adérito, mas à Dalila. Quem deveria matá-la, para que ela não se atirasse da varanda das traseiras a que o declive da encosta dos Anjos oferecia uma altura de mais de seis andares, era a Dalila. A Dalila mudara-se lá para cima pouco depois de a Carla chegar. Apresentara-se como amiga, mas não demorou muito até a vizinhança perceber que elas eram coisas. À afronta de serem coisas juntava-se o facto de a Dalila ser cigana, o que levou d. Felismina a pôr um sapo à porta, Pelo sim, pelo não, e a d. Engrácia a reforçar a fechadura da marquise, Nunca se sabe. 

Duplicaram, então, os gritos, já que aos do sr. Adérito, durante o dia, juntaram-se os delas, em intermináveis discussões noturnas. Ciúmes, disputas relativas aos rendimentos e despesas de cada uma, ofensas de familiares, alertas astrológicos para traições em curso, tudo servia de rastilho a gritos e choros que davam lugar, horas depois, às pazes e ao ranger de molas da cama. Nesses anos eu tinha o hábito de ler até tarde, o que me fez ficar a saber mais do que desejava sobre a intimidade do casal. 

Passava das duas da manhã de uma endemoniada noite de temporal, eu estava deitada no sofá a ler O Poder e a Glória do Graham Greene, quando, Mata-me ou atiro-me da varanda. Tive a certeza de que a Carla falava a sério. Horas antes, eu fizera pastéis de nata, seguindo a letra tremida da receita da avó Melita do Miguel, gastara muito tempo a confecioná-los, a massa folhada necessitava de não sei quantas voltas, papel vegetal e quadrados de manteiga, o creme não se ficava atrás em cuidados. Peguei num prato de pastéis e subi as escadas, O ódio é um fracasso da imaginação, disse-lhes pouco depois de me terem aberto a porta, citando uma das personagens do livro que eu abandonara. A Dalila e a Carla não puderam evitar a surpresa, mas logo se recompuseram encolhendo de ombros, Isto são coisas nossas, não fazemos mal a ninguém. 

Sentámo-nos à mesa da cozinha do sr. Adérito, um fervedor ao lume cheio de água para o chá de camomila, o prato dos pastéis pousado sobre uma toalha de oleado com uvas e folhas de videira. Lembro-me de que a explicação do drama metia uma mulher que trabalhava no talho em frente e uma boleia de um taxista, mas já não consigo refazer a história. A cozinha estava fria, vários alguidares recolhiam a água do telhado que haveria de ser arranjado no verão seguinte, o outono era um lobo a uivar furiosamente pelas frinchas das portas. O sr. Adérito ressonava no quarto grande. Bebemos o chá, comemos pastéis, dali a pouco rimo-nos e tornámo-nos três mulheres a fumar e a confidenciar segredos numa noite de temporal. 

Aquele amor improvável no andar de cima durou até ao agosto seguinte. A Fátima chegou e pôs tudo a andar, Era o que faltava ter disto em minha casa.

IN "VISÃO"
04/09/20
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