15/11/2020

CARMO AFONSO

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Portugal dos pequenitos 

Se a decisão do Tribunal Constitucional for a extinção do Chega justiça será feita, sobretudo a todos os que lutaram contra o fascismo e contra a ditadura, aos que estiveram presentes na Assembleia Constituinte e que por unanimidade fizeram constar uma intenção clara. O nº 4 do artº 46º da Constituição da República Portuguesa poderia chamar-se “Não passará” 

Portugal, março de 2007, RTP, programa “Os grandes Portugueses”; António de Oliveira Salazar é escolhido pelos portugueses, os que decidiram participar na votação, como “o melhor português de sempre” com 41% dos votos. A sua defesa foi feita por Jaime Nogueira Pinto. Acabei de rever o documentário que fez em sua homenagem. É ali que está a visão de alguns para Portugal, o culto da nação e o do grande líder discreto. A apresentação do homem honesto e íntegro: a negação de casos de corrupção no Estado Novo.

Termina o documentário junto à campa de Salazar no cemitério do Vimieiro com mais uma homenagem à sua singeleza: “sepultado numa campa rasa” e, por último, um vídeo do seu suave contentamento perante uma multidão que o enaltecia.

Ficou exposta a ferida.

Sim, existem portugueses que simpatizam com a figura de Salazar e ainda existem outros que o veneram.

Jaime Nogueira Pinto não terá abdicado do seu sonho para Portugal e terá passado a dar o seu apoio de forma oculta, ou pelo menos discreta, ao Chega e ao que o antecedeu. Aqui pode pensar-se: como pode o partido de André Ventura ser defendido por quem amava Salazar? Apesar do muito que os une, têm aspetos distintos: Salazar não apoiaria o tipo de criminalidade que o Chega acolheu, o populismo vaidoso de André Ventura e as suas flagrantes incoerências e incorreções.

Porque apoia então Jaime Nogueira Pinto este partido? O que o fará engolir um sapo como André Ventura, um homem que gosta de aparecer e que defende uma coisa e o seu contrário?

Talvez a mesma razão que o faz apoiar Trump; a oportunidade de normalizar e legitimar e unir ideologias extremistas de direita. O Chega não será, para parte de defensores do nacionalismo de extrema-direita, um objetivo mas sim um meio. Talvez seja essa a explicação para André Ventura ter apagado a fotografia do seu almoço com Jaime Nogueira Pinto, supostamente a pedido deste. Lutar pelo sonho de Salazar não é bem a mesma coisa que entrar nas redes sociais ao lado de André Ventura e ser exposto a tudo o que isso implica. É que as redes sociais foram um belo trampolim para a extrema-direita portuguesa mas pode acontecer que a coisa descambe e que dê demasiado nas vistas e, se o líder do Chega perdeu a vergonha, Jaime Nogueira Pinto não.

Enquanto estes planos se vão concretizando – o Chega é um partido com assento parlamentar e acabou de chegar a um entendimento com o principal partido português de direita – é importante fazer uma nova reflexão sobre as limitações constitucionais à liberdade de associação, ideologias fascistas e o papel do Tribunal Constitucional junto dos partidos políticos. É que o problema tem efetivamente expressão - e não se pode continuar a dizer que “em Portugal não temos isso”. Agora temos.

A Constituição deixou fora do direito de liberdade de associação “as organizações racistas ou que perfilhem ideologia fascista”. Diga-se que foi uma decisão unânime do legislador constituinte. Esta limitação não se reporta à liberdade de expressão, sendo os cidadãos livres de exprimirem e divulgarem livremente o respetivo pensamento e a sua adesão individual à ideologia fascista, mas impede a existência de partidos políticos dessa índole.

Aqui coloca-se a questão: o Chega é ou não um partido que perfilha a ideologia fascista?

Temos alguns indícios, como a proposta anunciada por André Ventura de confinar ciganos durante a pandemia, a insistência nos castigos físicos como penas para a prática de certos delitos (a castração química de pedófilos é bom exemplo); o discurso de conteúdo bélico do próprio André Ventura, que afirmou contar “com o apoio" dos seus "guerrilheiros e generais” no congresso do partido em Évora. Mais, na única moção por si apresentada apontou para o combate à imigração ilegal, o aprofundar os laços institucionais e políticos com os ditos parceiros do ID – o Identidade e Democracia, grupo partidário da extrema-direita no Parlamento Europeu e identificou como problemas nacionais, "a progressiva islamização das nossas grandes cidades, o marxismo cultural, a ideologia de género" e "a destruição da nossa base de valores civilizacionais".

De registar ainda a apresentação de uma proposta de nome "Moção Estratégica Global para Portugal", que defendia a remoção dos ovários das mulheres que recorram ao Serviço Nacional de Saúde para o aborto. Foi chumbada, mas foi a votação e obteve umas dezenas de votos favoráveis. Existe também a ligação do Chega a dirigentes e ex-dirigentes de grupos de extrema-direita violentos e racistas e a convocação para uma manifestação que negava a existência de racismo na sequência do homicídio de Bruno Candé; existe a xenofobia e a adesão a um líder que se apresenta como forte e capaz de restaurar a ordem (quem for capaz que diga mais três nomes de figuras de destaque ligadas ao Chega), a defesa da repressão, a desculpabilização da violência policial e a obsessão com a corrupção. Enfim. Nada de novo. Encontra-se disto em França, no Brasil e pelo mundo fora. Acabámos de assistir a algo parecido nos Estados Unidos. Fascismo.

Não se pode continuar nestas águas turvas que legitimam o primeiro-ministro a destratar (e muito bem) o deputado André Ventura na Assembleia da República ou como fez o líder do PCP (“Está-se a rir? Eu não lhe acho graça nenhuma.”) mas que admitem como normal a sua presença.

Existe uma outra estratégia, que tem sido seguida sobretudo pelo Bloco de Esquerda, mais trabalhosa, que passa por desconstruir e desmascarar cada trafulhice e cada incongruência atribuídas a André Ventura. É um processo meticuloso e que exige atenção. Deverá tê-la. Pode não resolver.

Há aqui uma certeza: o partido Chega é de extrema-direita e perfilha a ideologia fascista no que essa ideologia tem de mais característico.

E existem também várias dúvidas: a primeira é se o Tribunal Constitucional terá esse entendimento nos termos em que a ideologia fascista está definida na Lei nº64/78, de 6 de outubro, ou seja uma ideologia que defende os valores, os princípios, os expoentes, as instituições e os métodos característicos dos regimes fascistas que a História regista, nomeadamente o belicismo, a violência como forma de luta política, o colonialismo, o racismo, o corporativismo ou a exaltação das personalidades mais representativas daqueles regimes.

A única vez que o Tribunal Constitucional foi chamado a apreciar um requerimento que peticionava a extinção de uma organização por perfilhar a ideologia fascista foi a propósito do MAN (constituído em 1985), uma organização que pretendia instaurar o Estado Nacionalista, que utilizava a saudação de braço ao alto, cruzes céltica e suástica e que defendia o “racialismo”, apelando à violência e com fortes ligações ao movimento Skinhead. Foi o Procurador-Geral da República que teve a iniciativa e o TC não chegou a concluir se o MAN “perfilhava a ideologia fascista”, uma vez que a organização se dissolveu antes da prolação do acórdão 17/94 de 18 de janeiro.

A segunda dúvida é se será esta a forma de derrotar o Chega e refiro-me ao recurso ao TC quando se trata de um problema que já tem uma expressão política tão relevante.

Não será o fascismo a ser derrotado. O fascismo não se resolve com um processo judicial. Antes resolvesse. As pessoas têm a liberdade de ser fascistas e de exprimirem opiniões que apoiem essa ideologia. A questão é se o TC admite ou não um partido como o Chega. E interessa a todos que se pronuncie sobre isso.

Porquê?

Porque se a decisão do TC for a extinção do Chega, justiça será feita, sobretudo a todos os que lutaram contra o fascismo e contra a ditadura, aos que estiveram presentes na Assembleia Constituinte e que por unanimidade fizeram constar uma intenção clara. O nº 4 do artº 46º da Constituição da República Portuguesa poderia chamar-se “Não passará”.

E se o TC decidir em sentido contrário e confirmar a regularidade do Chega face à legislação portuguesa? Aí poderá acontecer um fenómeno importante: o da responsabilização política dos portugueses. Não votam? Pois, é isto que acontece. Não se manifestam, ficam no passeio? Camaradas, isso nunca correu bem. Acham que os extremos são parecidos? Não são. Foi graças ao PCP e ao Bloco, algumas vezes em sintonia com a direita, que se construiu a democracia. O PCP e a UDP estiveram presentes na Assembleia Constituinte. Não acreditam na luta antifascista? Foi ela que nos deu a liberdade e está tudo em causa outra vez. Aceitam tamanhas desigualdades sociais e um capitalismo sem regulação? É deles que nasce o fascismo.

Já agora: o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo, o Provedor de Justiça e o Procurador-Geral da República têm legitimidade para requerer a extinção de partidos políticos. Só que a terceira dúvida é se alguém o virá a fazer.

Se metermos uma rã numa panela de água a ferver a rã seguirá o seu instinto de sobrevivência e em segundos saltará da panela escapando em princípio com vida. Se metermos uma rã numa panela, com água fria ou morna, ao lume, a rã habituar-se-á à subida da temperatura e não detetará aquela que já é perigosa e que a matará. É uma maneira de morrer.

Não seremos muito diferentes das rãs nisto.

Estamos há demasiado tempo a conviver de forma polida com este monstro e vamo-nos habituando a ele. Por alguma razão Rui Rio achou que não seria grave, no sentido em que não perderia eleitorado, um entendimento com o Chega. Ou seja; a temperatura já queima mas Rui Rio tem fé na inércia e na apatia dos portugueses.

A escalada da extrema-direita populista e do fascismo não desacelerou com a pandemia. É mais uma chama a aquecer a panela em que cozemos. Aceitamos restrições em nome do coletivo e em especial dos grupos de risco, mas é importante que esta aceitação não seja mansa, mas uma escolha consciente. Que não a confundam com obediência cega e que não a encaremos assim.

Quando apanho um táxi não tenho o costume de perguntar ao motorista se tem carta de condução, licença para o exercício da atividade ou se ingeriu substâncias que alterem a sua capacidade de nos levar em segurança ao destino que indico. Este princípio de confiança não deve ser estendido à vida política em nenhum dos seus aspetos.

É obrigatório perguntar se um dos partidos com assento na Assembleia da República é fascista, é obrigatório verificar se nos sentimos representados por quem está no poder, é obrigatório questionar um mega sistema que afinal se condensa numa pequena oficina de milionários.

E é absolutamente obrigatório apontar para que fiquem na memória os nomes de quem trouxe à cena política este partido e o de quem lhe dá força: Jaime Nogueira Pinto - o intelectual que legitima - e Rui Rio - o dirigente partidário que abriu as portas da governação ao Chega mas que, ao mesmo tempo, se congratula com a derrota de Trump - são bons exemplos.

E não apontem o nome do cabeça de cartaz.

Peçam essa cabeça, vão para a rua gritar.

Nota: escrever várias vezes sobre o mesmo tema seca a poesia. A extrema-direita e o fascismo também. Ficam então as metáforas. Fazem-se sozinhas.

IN "EXPRESSO" - 11/11/20

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