09/09/2020

RUI TAVARES

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Obrigado, visionário Vicente

A maior parte de nós perdemo-nos pelo caminho. Outros persistem, e insistem, e deixam escola. Esses são poucos. Em Portugal são muito poucos. E Vicente Jorge Silva foi um dos maiores deles.

Portugal precisa de mais gente como o Vicente Jorge Silva. Portugal e o resto, mas é de Portugal que nos ocupamos aqui. Gente que olhe para o país, e diga: faz falta isto aqui, e que seja tão bom como em qualquer outra parte do mundo. Até aí é fácil, qualquer um se põe à mesa de café a imaginar as coisas que não existem e deveriam existir. Mas depois há aqueles, como Vicente Jorge Silva, que largam tudo para concretizar o que imaginaram. Que entusiasmam gente e os desviam do seu caminho em nome de uma ideia nova, grande e um pouco louca. Que metem os pés ao caminho para negociar a sua ideia com o mundo real e fazê-la verdade. Que juntam equipas, que as lideram, que têm as dores de cabeça e a pulsação acelerada para que a ideia que poderia não ter passado de sonho esteja nas mãos de toda a gente como realidade.

E depois é preciso mais do que isso. É preciso começar a pensar em nunca acabar depois de se ter nascido. É preciso querer ser mais do que a ideia tornada real, há que querer ser a ideia tornada real dia após dia, todos os dias (menos no Natal e no Ano Novo) ano após ano. É preciso saber fazer nascer, crescer e tornar-se a ideia numa instituição.

E em cada um desses passos aqueles que os são capazes de dar são cada vez menos pessoas. A maior parte de nós perdemo-nos pelo caminho. Outros persistem, e insistem, e deixam escola. Esses são poucos. Em Portugal são muito poucos. E Vicente Jorge Silva foi um dos maiores deles.

Por isso admirei e continuo a admirar o Vicente Jorge Silva, sem nunca ter tido ocasião de lho dizer. Admirei-o até quando ele escreveu o editorial que mais enfureceu a minha geração — precisamente porque já éramos então a geração do PÚBLICO. Naqueles primeiros anos da faculdade já passávamos uns aos outros o vício de ler o jornal de trás para a frente, com tinta nos dedos, e todo: das breves, ao local, ao internacional, aos classificados e ao policiário. E quando o bicho dos jornais se entranhou definitivamente, eu descia até ao centro da cidade e comprava com o resto do dinheiro um jornal estrangeiro — o Libération, o El País, a Economist — e ficava contente e um pouco soberbo porque “tínhamos cá tão bom quanto isto”. O PÚBLICO era assim de se ler do princípio ao fim com fome de aprender e descobrir, como já o tinha sido a revista do Expresso, porque o Vicente Jorge Silva e a equipa que fundou o jornal não se conformariam com menos, provavelmente porque eles também queriam ler o melhor que tinham para escrever.

Com o gosto de ler e com aquele primeiro grafismo tão elegante (do Henrique Cayatte) veio também uma visão do mundo: o PÚBLICO teve a sorte de nascer numa época-charneira, e a capacidade de a interpretar e de lhe dar um sentido. Talvez sem se dar por isso, uma visão aberta e cosmopolita, culta e lúdica, profundamente democrática e livre que se foi insinuando em nós surgiu ali. Quando fomos para fora, o PÚBLICO fazia falta, e depois começámos a lê-lo na internet todos os dias, e o nosso olhar era o de portugueses que olhavam para o mundo com aquilo que tinham aprendido no Público, com a confiança que tínhamos no profissionalismo dos seus jornalistas e na visão do mundo que tinha o projeto.

Aquilo que Vicente Jorge Silva e os seus companheiros e companheiras conseguiram criar era tão forte e definido que o jornal continuou mesmo depois de o seu fundador ter saído, e nunca perdeu aquele ethos inicial, a ideia de que a junção do individualismo do inovador, a exigência da sociedade civil, a noção comercial do investidor, e o interesse geral da comunidade é que fazem, em seu conjunto, o PÚBLICO.

(Estava eu longe de imaginar que um dia receberia um email às duas da manhã, e logo do diretor que eu mais acerbamente critiquei no PÚBLICO — o José Manuel Fernandes, por causa da Guerra do Iraque, uma experiência para leitores e imagino que para todos no PÚBLICO— a convidar-me para escrever aqui, quando nada levaria a crer em tal hipótese na minha trajetória. Demorei um bom bocado para acreditar que fosse mesmo verdade, desconfiado que algum amigo mais brincalhão pudesse ter adivinhado que aquele era o meu sonho secreto, porque o PÚBLICO já era o meu jornal. Esse era o segredo: o público tornava-se pessoal.)

Tudo isto imaginei, adiando, dizer um dia a Vicente Jorge Silva — até já não haver dia em que lho pudesse dizer. Mas de certa forma não faz mal, porque ele sabia-o certamente. Em Portugal temos poucas verdadeiras instituições da sociedade civil. Ele fundou uma. Em Portugal temos poucas pessoas que deixem escola. Ele foi uma delas. E certamente foi-se embora sabendo que deixava o país e o mundo melhor à sua passagem.

Comecei por dizer que Portugal precisa de mais gente como o Vicente Jorge Silva. A melhor maneira de termos mais gente como ele é ter tido um como ele. A rememoração que agora começamos a fazer inspirará outros e outras a fazerem o mesmo, fazendo diferente. E assim encontraremos o nosso lugar no mundo.

Obrigado, muito obrigado, fundador e co-criador do nosso jornal. Poucos terão deixado tal legado. Cada dia que todos — quem lê, quem escreve, quem desenha e fotografa, quem abre portas e quem deixa maços de papel nas bancas — conseguirmos levar o PÚBLICO por diante, ele levará sempre muito de ti. Que esse dia nunca acabe.

IN "PÚBLICO"
08/08/20
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