25/08/2020

MIRIAM HALPERN PEREIRA

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Uma revolução liberal

 a dois tempos 

 A Constituição foi festejada como uma conquista fundamental: quando os deputados se deslocaram a Queluz para a apresentar ao Rei, regressado do Rio em 1821, foram saudados pela população à chegada e ao longo do caminho do regresso 

Revolução Liberal portuguesa fez-se em dois tempos fundamentais, separados por cerca de uma década: o triénio vintista e os anos 1832-1834. Corresponderam a geografias revolucionárias internacionais distintas, às quais o seu percurso esteve inteiramente ligado.

A revolução de 1820 insere-se no amplo movimento revolucionário que percorreu a Europa do Sul de leste a oeste e a América do Sul, com repercussão até na India (Goa). Uma aceleração da História parece ter tido lugar nesta época, que Hobsbawm apelidou de Idade das Revoluções, expressão recentemente retomada por Javier Sebastian, na senda de Kosselek. Assiste-se ao esboroar de um mundo, o Antigo Regime e os impérios latino-americanos, e o nascimento de um outro novo, um futuro em construção, cujas bases se vão lançar.

No centro destas revoluções esteve o projeto de uma constituição política, inspirada na Constituição de Cádis de 1812, nalguns casos adotada de imediato sem alteração. Este movimento do Sul da Europa apaixonou os liberais de países do Norte, que o encararam como o início de uma nova época histórica, o acordar de países até então submetidos a regimes absolutistas e mergulhados num grande atraso cultural. Os acontecimentos são largamente noticiados na imprensa liberal e inspiraram uma numerosa literatura, entre a novela e a realidade. A onda de solidariedade consolidou-se com a organização de redes de apoio e a formação da Internacional Liberal.

O contexto europeu não é, contudo, favorável a este movimento revolucionário, que se desenvolve em contraciclo com a orientação acordada pelas principais potências europeias e consagrada pela Santa Aliança em 1815. As guerras napoleónicas tinham desempenhado um papel catalisador de sentido múltiplo na Europa meridional e na América do Sul, propiciando os ventos de mudança. Estabelecida a paz no Congresso de Viena, pretendia-se pelo contrário evitar qualquer mudança no equilíbrio existente.

Em Portugal, iniciara-se um dos períodos mais complexos da sua história com as invasões francesas, de curta duração, mas muito destrutivas. Sucederam-lhes doze anos de ocupação informal britânica. Ainda assim a Casa de Bragança conservou a Coroa, mantendo o Brasil e outros territórios coloniais por mais uma década sob o seu domínio formal. Sob este aspeto dinástico, a sua história diferencia-se do caso espanhol. A Casa de Bragança vai conseguir conservar o poder real dos dois lados do Atlântico durante a maior parte do século XIX, apesar das grandes transformações que vão ter lugar. Esta continuidade esconde uma realidade em grande mutação.

Encerrado o ciclo das guerras, o descontentamento em Portugal assumiu um conteúdo político novo. Uma situação aceite como temporária, justificada pelo risco de nova invasão estrangeira, surgia como permanente e sem fundamento em tempo de paz. Não havia sinais do regresso do Rei, a instituição do Reino Unido de Portugal e do Brasil em 1815 seguida da coroação de D. João VI, bem acolhidas no Brasil, foram dececionantes em Portugal.

Tão pouco havia sinal dos ingleses quererem partir e o tratado de paz assinado em Viena só autorizava a revisão do desastroso tratado anglo-português de comércio e navegação de 1810 decorridos quinze anos após a sua assinatura. Foi então que se teve a perceção clara da catastrófica situação política e económica de Portugal, estranhamente na dependência tanto do recém-nascido Reino Unido, cujo centro residia no Rio de Janeiro, como da Grã-Bretanha.

O marechal Beresford, militar inglês que dirigira o combate contra os invasores franceses em 1809 e depois viria a integrar a Regência, face aos sucessivos conflitos de competências com os regentes, deslocara-se ao Rio para solicitar um reforço do seu poder, já considerável como responsável da área militar e financeira. Regressava desta viagem em 1820, quando foi surpreendido em pleno mar pelo início da revolução de 1820. Mudaria de rumo, assim terminando a fase portuguesa da sua carreira militar e política.

Entretanto os Regentes, que desde 1809 reportavam ao Rei que os seus súbditos se sentiam remitidos a um estatuto colonial, informaram a breve trecho o Rei acerca do seu reconhecimento das Cortes. Não tinham esperado pela sua autorização. Surgira um novo poder na cena política: a Nação. A imprensa no exílio contribuíra ao longo destes anos para a afirmação do nacionalismo e do liberalismo, a partir daqui estreitamente relacionados. Em nome da Nação, criticava-se tanto a Coroa como a Grã-Bretanha.

Apesar da revolução de 1820 ter a sua origem num movimento da elite, uma pequena estrutura maçónica, o Sinédrio, composto de civis, em maioria, e militares, o seu êxito despertou uma enorme esperança de mudança na população, acompanhada do desejo de participação política. O amplo movimento peticionário de 1821-22, proveniente de todo o país, de norte a sul, é disso testemunho. O apoio popular teve forma diversificada, desde os numerosos Te Deum’s celebrados, a múltiplos folhetos e brochuras, poesias e canções que celebravam os acontecimentos, a medalhas oferecidas aos deputados. Alguns objetos de uso corrente, como as cartas de jogar, ilustravam os novos valores, sendo as figuras reais substituídas pelos ideais da revolução, constituição, verdade, liberdade e igualdade. Surge uma variada iconografia, hoje dispersa e em parte desaparecida. A Constituição é festejada como uma conquista fundamental: quando os deputados se deslocaram a Queluz para a apresentar ao Rei, regressado do Rio em 1821, foram saudados pela população à chegada e ao longo do caminho do regresso. Os novos valores aparentavam ter extravasado o círculo restrito inicial e atingido camadas da população mais amplas. O Palácio do Tribunal da Inquisição, símbolo da opressão do Antigo Regime, foi incendiado pela população de Lisboa. Ali viria a ser construído o atual Teatro D. Maria II.

No Brasil, o poder da Coroa Portuguesa continuara a ser respeitado, excetuada a revolta de 1817, ocorrida pouco antes da conspiração de Gomes Freire em Lisboa, e violentamente reprimida. Os luso-brasileiros estavam contentes por ter o Rei perto e as condições da elite luso-brasileira tinham melhorado. A monarquia, agora com a capital no Rio, o que significou a instalação de uma réplica do aparelho central de Estado, parecia mais adequada a manutenção do sistema esclavagista. Mas as ideias liberais tinham prosseguido o seu curso e quando a revolução eclodiu em Portugal e um movimento de adesão atravessou logo algumas províncias do Brasil.

A separação entre o Brasil e Portugal foi um processo muito complexo, cada parte procurando dominar a outra, em nome de uma união que se tinha tornado vã, mas cujo ideal tardava em desaparecer de ambos os lados do Atlântico, mais acentuadamente do lado português. Só em 1825, três anos depois da declaração da independência brasileira por D. Pedro, daí em diante designado imperador, se assinou o tratado de paz que pôs fim à pretensão portuguesa de recuperar a posição comercial privilegiada. Só então os ingleses aceitaram negociar tratado de 1810, que assim pode continuar em vigor no Brasil. A morte de D. João VI e o regime miguelista interromperam as negociações apenas retomadas após a revolução de 1832-34.

Neste primeiro tempo, a revolução liberal em Portugal pode ser definida como nacionalista e colonialista. O reajustamento da posição económica e política de Portugal na Europa e na América meridional, só se processou com a segunda fase da revolução liberal, nos anos 30. A conjuntura política internacional, nomeadamente europeia, alterou-se profundamente com a revolução de 1830 em França e a vitória dos Whigs, sobre os Tories, na Grã-Bretanha. Fundamental foi também a destituição do Imperador D. Pedro I no Brasil e a sua vinda para a Europa, reunindo-se à sua filha D. Maria, assumindo-se de imediato como o futuro Regente e dirigente do movimento liberal no exílio. A Carta Constitucional de 1826 torna-se o baluarte sob a qual vintistas e cartistas, antes divididos, se reuniram. Vários são os antigos vintistas que se converteram ao cartismo nessa altura, recorde-se Silva Carvalho, Mouzinho da Silveira, Alexandre Herculano, Almeida Garrett entre outros. Estavam reunidas novas condições que permitiram aos liberais, exilados em Londres e Paris desde 1828, a obtenção de auxílio financeiro e militar para organizar o desembarque em Portugal, primeiro nas ilhas açorianas, seguidamente no Mindelo, e para prosseguir o combate militar contra os miguelistas.

A violenta guerra civil que durou cerca de dois anos, foi acompanhada da afirmação de um novo projeto político, económico e social, de que o principal obreiro foi Mouzinho da Silveira. Seria sob a égide da moderada Carta Constitucional, e não da Constituição de 1822, que se realizaria grande reforma do Estado e da sociedade de Antigo Regime. Esse foi um paradoxo da revolução liberal portuguesa, que demonstra como a conjuntura tem um papel decisivo. Como Mouzinho expôs repetidamente, “as conquistas” haviam sido o alicerce do Antigo Regime, o seu desaparecimento tornava imperativo a criação de novas estruturas e a abolição das antigas, agora obsoletas. A revolução, como escreveu, estava “na natureza das coisas”. A violência miguelista ensinara que só cortando o mal pela raiz, o liberalismo se poderia implantar, observaria também. A origem da sua reforma proveio da necessidade de encontrar uma nova base financeira para o Estado, mas foi muito mais abrangente.

Algumas medidas previstas nos anos 20, mas então adiadas, seriam retomadas agora, outras seriam mais ousadas. A lei dos forais, que designou de “bula do liberalismo”, estabelecia a sua abolição nos vastos bens da Coroa (os bens patrimoniais eram excluídos), atribuindo a plena propriedade aos lavradores de forma gratuita, em contraste com a moderada lei vintista que apenas reduzira o seu valor. Representava uma considerável reforma agrária. A legislação delineada por Mouzinho e publicada desde a ocupação das ilhas até ao cerco do Porto, durante o qual se demitiria por discordâncias na política financeira, anuncia também a grande reforma do aparelho de Estado de Antigo Regime e a organização de um novo modelo de administração pública, alicerce do funcionamento do futuro governo liberal. A vitória dos liberais a 24 de Julho de 1833 marcou o golpe final no Antigo Regime, que apesar da revisão, nos anos subsequentes, em sede parlamentar da legislação de Mouzinho promulgada em “ditadura”, não ressuscitaria. Já com muita idade, ele viria ainda ao Parlamento defendê-la.

Ficara ainda por resolver em 1834 uma questão fundamental para a economia portuguesa: a substituição do tratado de comércio e navegação assinado com a Inglaterra em 1810, condição exigida ao Regente Príncipe D. João em 1807, por acordo secreto, em troca da instalação da Corte no Brasil, juntamente com a abertura imediata dos portos brasileiros. Ambas as condições tinham afetado profundamente a economia. A morosidade das negociações a este respeito, da responsabilidade do poder executivo a quem pertencia em exclusivo a negociação de tratados internacionais segundo a Carta Constitucional, esteve na origem da Revolução de Setembro, repondo a Constituição de 1822 e o poder da Camara de Deputados neste domínio. Abria-se um prolongado conflito entre cartistas e constitucionalistas.

* Professora Catedrática Emérita, CIES/ ISCTE-IUL. Presidente da Comissão Executiva do Congresso Internacional do Bicentenário da Revolução de 1820 (adiado para Outubro de 2021)

IN "EXPRESSO" - 24/08/20

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