28/08/2020

IGNACIO VÁSQUEZ MOLINI

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Meditações de 
gastronomia transcendente

Ás vezes pensamos que a taxonomia, essa vocação para classificar tudo quanto nos rodeia, e que nos ajuda a compreender melhor o meio em que desenvolvemos as nossas vidas, responde sempre a critérios científicos, objetivos e inatacáveis, que existiriam desde a noite dos tempos, descobertos por sisudos investigadores que explicam aos pobres e ignorantes mortais como esses elementos têm sobrevivido desde a antiguidade até estes nossos tempos, tão turbulentos e incertos, em que a pandemia nos enche de angústias e terrores existenciais.

Essa maneira de ver as coisas talvez seja correta e, inclusivamente, a mais adequada quando se trata de compreender e ordenar as diferentes classes de organismos biológicos, ou os elementos da tabela periódica. No entanto, as suas vantagens não são tão evidentes principalmente quando se tenta aplicá-la com a mesma rigidez, por exemplo, à literatura, à gastronomia ou a qualquer outra criação da caprichosa mente humana.

Assim, estamos tão acostumados a ouvir repetidamente que existe sem qualquer dúvida uma literatura nacional, que pensamos que, da mesma forma que existe a subordem dos carnívoros, a família dos plantígrados e o género dos ursos, existe uma literatura europeia, dentro da qual se enquadram, por exemplo, a espanhola e a francesa, que por sua vez incluem o teatro do Século de Ouro ou o romance naturalista do século XIX.

Da mesma maneira, repetem-nos até à saciedade, por exemplo, que existe uma cozinha italiana, que engloba a sarda, a napolitana ou a piemontesa, como se estas distinções existissem desde sempre e a sua classificação lançasse alguma luz sobre os seus conteúdos e formas.

No entanto, é sabido que o conceito de literatura nacional é relativamente recente. Tanto assim que muitos dos leitores eruditos dos princípios do século XVIII, que não suspeitavam sequer que as fronteiras físicas de Reinos e Estados pusessem afetar minimamente a criação literária e, sobretudo, o seu desfrute, teriam ficado desconcertados se alguém afirmasse que Shakespeare fazia parte da literatura nacional inglesa, Cervantes da espanhola ou Rabelais da francesa.

Também sabemos que o conceito de cozinha nacional é de aparição ainda mais recente. De facto, por exemplo no caso espanhol, a existência dessa pretensa gastronomia nacional é recentíssima, já para não falar das cozinhas regionais. Foi estudado em profundidade como surge, nas primeiras décadas do século XX, um nacionalismo culinário, que muito rapidamente evolui para particularismos ainda mais restritos, como é o caso das regiões. Assim, já não é adequado falar de gastronomia espanhola, antes de cozinha basca, galega ou catalã, dentro de um fenómeno que decorre paralelamente ao reforçar das identidades territoriais entendidas como diferenças face ao outro. Trata-se, portanto, de estabelecer fronteiras, já não nacionais, mas sim locais, para afirmar que, em definitivo, os nossos guisados tornam-nos diferentes, muito distintos dos do vizinho, inclusive atualmente, quando segundo os últimos dados das agências internacionais, as variedades vegetais e animais que constituem a nossa alimentação reduziram-se em cerca de 75%. Sendo assim, acontece que no fim todos comemos as mesmas coisas, ainda que, isso sim, com nomes cada vez mais complicados que reforçam essa sensação de falsas diferenças.

Há uns anos, alguém propôs, sem grande êxito, que as autênticas fronteiras deveriam ser as que surgem do uso do azeite face à manteiga, da refutação da omnipresença do alho ou, ainda mais conflituante, a da apreciação dos coentros como um condimento suave ou como um adereço insuportável que a tudo se impõe e que tudo estraga.

De todas estas questões se ocuparam muitos gastrónomos e um ou outro literato, assim como sisudos antropólogos e politólogos de muitas e variadas origens, mas só um deles, Jean Anthelme Brillat-Savarin, conseguiu reunir magistralmente as qualidades necessárias para criar uma obra tão irrepetível como é a Fisiologia do Gosto, que merecia, também nos nossos dias, maior fama e consideração tal como aconteceu ao longo dos últimos séculos.

Esta obra genial, de leitura mais do que recomendável, tem o subtítulo, completamente acertado, de Meditações de gastronomia transcendente, e a magnífica edição francesa de Jean de Bonnot, ilustrada por Bertall, ainda pode ser encontrada com relativa facilidade em alguns dos alfarrabistas que, com grandes dificuldades, sobrevivem em Lisboa. Ao longo das suas quase 500 páginas, o leitor descobrirá as bases filosóficas da gastronomia, nunca nacional e menos ainda local, mas sempre universal.

Brillat-Savarin não se limita de maneira nenhuma a enunciar pratos e ingredientes ou a detalhar como se preparam os diferentes alimentos. Em vez disso, num francês elegante e preciso, juntamente com muitas histórias, reflete e analisa, através do que denomina meditações, os sentidos e, naturalmente, sobretudo o do gosto. Reflete, como o melhor dos filósofos, sobre os mistérios do apetite e da sede, assim como sobre os alimentos e as bebidas. Estabelece, entre muitas outras coisas dignas de passar à posteridade, uma teoria da fritura e outra dos prazeres da mesa, assim como do seu merecido remate que é o repouso, a posterior e inevitável sonolência e, inclusivamente, mais uma sobre a interpretação dos sonhos. Adiantando-se à sua época, identifica as causas da obesidade, e também as da magreza excessiva. É todo um programa filosófico-gastronómico que só pode enriquecer quem se aventure, livre de preconceitos, pelas páginas de Brillat-Savarin, oferecendo-nos, por acrescento, algo tão essencial como é o número ideal de ostras que uma pessoa deve comer antes de enfrentar os diferentes pratos que compõem um bom almoço ou um excelente jantar. Esse número, que tem bastante de cabalístico e que em francês se denominou tradicionalmente la grosse, é o que o leitor atento fará bem em descobrir quanto antes.

* Funcionário da UE e escritor

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
26/08/20

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