10/07/2020

MIGUEL ARAÚJO

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A Casa da Barragem

Por artes que eu não posso, não devo, não quero, não ouso nem vou compreender, as nossas vidas prosseguem facilitadas sem que sequer tomemos cinco minutos para dar valor a quem tomou a vida toda para as pôr a funcionar

Daqui de onde eu posso apreciar as grandes minudências deste mundo, as coisas são simples. Do meu ângulo ignorante e ingrato, liga-se (liga-se? Roda-se, abre-se) a torneira e a água brota cristalina e morna, e uma pessoa toma um chuveiro. Uma pessoa alivia-se dos excedentes que o corpo decide excretar, prime aquele botãozinho e dá-se a magia, a porcaria transita por ali afora por canos até sabe-se lá onde, rumo ao oblívio derradeiro, uma pessoa pousa a revista na pilha das revistas que serve de amparo a tarefas dessa natureza, faz o que tem a fazer e pronto. As coisas ligam-se à parede e acontecem torradas, música, limpeza a vácuo, CNN em direto da América, cabelos secos. Por artes que eu não posso, não devo, não quero, não ouso nem vou compreender, as nossas vidas prosseguem facilitadas sem que sequer tomemos cinco minutos para dar valor a quem tomou a vida toda para as pôr a funcionar. Nutro verdadeiro fascínio por quem compreende, por quem se inclina para estas coisas, por quem tem, por gosto, busca–polos e ferros de solda em casa, essas coisas cujos nomes nem sei. Os homens da família da minha mulher são assim. Na família da minha mulher existia, até há não muito tempo, uma casa numa barragem para os lados de São Teotónio, Odemira. Entretanto, foi vendida. Uma casa linda, idílica, junto a um rio maravilhoso, uma casa simples. Uma daquelas casas eco-bio-non-carbon-footprint em pedra e madeira, onde pousam borboletas e cobras. Daquelas casas onde os passarinhos cantam e onde a água da torneira sai castanha e é preciso deixar correr um bocadinho.

Daquelas casas onde, ao lado, existe outra casa, mais pequena, onde moram alavancas e depósitos manejados por homens, os homens da família da minha mulher, alavancas que são o coração, o miolo da engrenagem que faz a casa funcionar. Fui lá uma vez. Instalei meu ancho e sedentário traseiro numa cama de rede, como um nababo, e apreciei toda essa telúrica e ecológica simplicidade, sem suspeitar das alavancas e chaves que o meu cunhado, entretanto, rodava na casa das máquinas, para que a minha meia de leite vegetal e biológica se me servisse quente pela manhã, junto a uma torradinha de espelta com pasta de avelã e xarope de agave. Eu namorava há poucos meses com a minha mulher e sugeri que seria bom ficarmos lá mais uns dias, só os dois, em retiro hippie-chic-formentera-green-new-wave-namaste-hashtag-deusnocomando. Sim senhor, ficaríamos. Os meus cunhados iriam embora no domingo. O meu cunhado Francisco disse que bom, fiquem mais uns dias, vou só explicar-vos num instantinho como funcionam as coisas por aqui. Fui encaminhado para o cadafalso do CPU mecânico de toda aquela engrenagem. A conversa não se passou exatamente assim, o tempo hiperbolizou-a na minha mente, mas foi isto que eu ouvi, mais ou menos, enquanto anuía a tudo com o queixo, de mãos atrás das costas, como capataz de obra entendido. Para ligar a água quente, estas duas alavancas ao mesmo tempo até ouvires clank, depois rodas esta chave amarela até o ponteiro daquela agulheta ali ao fundo chegar aos oito amperes de voltagem, aos 90 ohms kava, cuidado para não chegar ao vermelho senão a casa explode, ok, percebi, chave vermelha, cuidado para não chegar ao amarelo, não, ao contrário, ok, ao contrário, as duas alavancas até fazer click, não, clank, ok, clank, entendido, entretanto tens aqui esta marreta para, se aparecer um javali, lhe acertares no meio dos olhos, acerta com força senão pode ser perigoso, ok, marreta no meio dos olhos, aqui fica o depósito de água, este respiro tem de estar sempre entre esta marca e esta, se passar drenas o tanque com esta pipeta que aqui está, não engulas porque pode ter estafilococos fecais, esta é a água do esgoto que, entretanto, é filtrada ali, já te ensino como é que se liga o filtro. Ok, diz-me só uma coisa, será por causa disso que a água quando se liga sai um bocado castanha? Depois foi ficar a ver o Range Rover branco do meu cunhado esvanecer no horizonte.

* Músico

IN "VISÃO"
08/07/20

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