28/07/2020

DINA SEBASTIÃO

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O triunfo do eixo franco-alemão 
sobre as vistas curtas
 dos tais “frugais”

Apesar de o líder dos Países Baixos preferir não apelidar o acordo de histórico, este acordo é sim um sinal de revés da sua orientação neoliberal para a UE, defensora de que os ajustamentos económico-financeiros na Zona Euro tenham de ser feitos pela redução dos custos do trabalho e de despesa pública

O Conselho Europeu de 17 a 21 de julho foi a segunda cimeira mais longa da história da UE, para ela própria fazer história na integração europeia. Foi aprovado um fundo de recuperação de 750 milhões de euros, dos quais 390 milhões são transferências financeiras para os Estados-membros, cujo pagamento é garantido por contração de dívida pública comum europeia. Não, o acordo não foi tão ambicioso como a proposta inicial! Sim, os tais “frugais” condicionaram a negociação e fizeram baixar a fasquia! Sim, os Estados de Visegrado, violadores do estado de direito, também! Foi o preço a pagar pela regra de votação por unanimidade – a dos acérrimos defensores da soberania nacional! Mas já lá iremos.

Primeiro, o caráter histórico do acordo. A UE iniciou a crise Pandémica com alguns estados a dizer “jamais” à mutualização de dívida europeia como resposta à crise económica que se avizinhava. Uma medida já reclamada por alguns economistas desde a criação da moeda única, e reforçada na crise financeira de 2008, mas sem sucesso. A entrada da dupla franco-alemã na dianteira das propostas económicas de resposta à Pandemia, ladeada pela iniciativa hábil da Comissão de von der Leyen, abriu caminho para que a UE tivesse aprovado em tempo recorde um pacote financeiro que não só será uma injeção de alívio às economias nacionais, permitindo reduzir significativamente as consequências sociais da crise e conter os discursos políticos nacionalistas e extremistas, como também significa um enorme avanço na integração económica desde a instauração do Euro. Por algum motivo lhe chamaram o Plano Marshall da Europa. Triunfaram as lições políticas das consequências da resposta à crise financeira de 2008, invertendo-se a tendência austeritária que daí derivou e que alguns Estados estavam dispostos a replicar agora.

O acordo é histórico porque concessiona à Comissão Europeia a emanação de dívida pública europeia – trata-se portanto de assunção de uma responsabilidade financeira da UE pela via supranacional e não intergovernamental. Embora vinculada apenas a este pacote de dívida, abre o caminho para a criação de novas receitas próprias do orçamento da União, ou seja, para uma capacidade tributária europeia, para garantir o pagamento da dívida. O mais difícil, dar o primeiro passo, está feito. A UE reforça assim o seu papel, até agora praticamente irrisório, de redistribuição de riqueza à escala europeia. Não se trata de solidariedade, como já aqui escrevi! Trata-se de racionalidade económica. Quer isto também dizer que o discurso já gasto dos tais “frugais” e de muitos que cá pelos lados do Sul o reproduzem quando estão na oposição ou levados pelos ventos neoliberais, de acusar Portugal de “pedinte”, não colhe! De acordo com o projeto, a dívida não será paga com contribuições nacionais, mas sobretudo com a criação de receitas fiscais europeias, algumas advindas das dinâmicas próprias das liberdades comerciais e económicas permitidas pelo mercado interno europeu. Abre-se a porta para que a UE finalmente comece a equilibrar as suas competências de liberdade de mercado com a de regulação, através da fiscalidade.

Não quer isto dizer, para descanso dos temorosos com a perda de soberania nacional, que se a UE adquirir competências fiscais permanentes, esvazie os Estados da sua existente competência fiscal. Quer apenas dizer que os estados mantêm competências fiscais ao nível nacional, mas haverá um âmbito de competência fiscal exercida ao nível supranacional (em que será mais eficaz fazê-lo a este nível do que ao nacional – veja-se o que está planeado: taxas sobre o digital, sobre o plástico não reciclado, ajustamento de emissões de carbono e imposto sobre transações financeiras, a concretizar até 2027).

Por isso, apesar de o líder dos Países Baixos preferir não apelidar o acordo de histórico, este acordo é sim um sinal de revés da sua orientação neoliberal para a UE, defensora de que os ajustamentos económico-financeiros na Zona Euro tenham de ser feitos pela redução dos custos do trabalho e de despesa pública, enquanto os equilíbrios orçamentais holandeses proveem de políticas fiscais agressivas que desviam milhares de milhões de euros em impostos de empresas europeias que deveriam ser pagos noutros países, onde a atividade económica é gerada.

Igualmente importante é o facto de este passo de integração vir reforçar o debate do aprofundamento político da UE, da necessidade de reforma das instituições europeias, nomeadamente de aprofundamento da sua legitimidade, através de reforço de mecanismos democráticos. É isto também a materialização da “Europa dos cidadãos”! Uma Europa que combate as crises económicas com minimização de consequências sociais! Uma Europa que legitima as suas políticas por participação representativa dos cidadãos.

Podíamos ter ido mais longe neste Conselho Europeu? Podíamos! E deveríamos, em vários aspetos! O otimismo do momento não esconde que o montante pode vir a não ser suficiente face à imprevisibilidade da evolução pandémica. Mas a realpolitik é assim! Com um sistema de decisão por unanimidade as cimeiras não só se alongam, como as cedências têm de acontecer para que seja possível um acordo. E são precisamente as vicissitudes desta negociação no Conselho Europeu que também evidenciam bem as perversidades de um sistema de decisão intergovernamental e por unanimidade como método de decisão, que muitos defendem como o melhor garante do interesse nacional. Ora, a unanimidade permitiu que quatro governos em 27, que representam apenas cerca de 9% da população da UE, tivessem bloqueado a negociação e diminuído significativamente o montante de subvenções. Permitiu ainda que dois estados em 27, Hungria e Polónia, em situação de violação do estado de direito, tivessem também conseguido influenciar os resultados, embora ainda não esteja fechado o debate da condicionalidade do estado de direito para aplicação dos fundos.

A regra da unanimidade leva assim ao recurso da velha técnica “do dividir para reinar”, que felizmente esbarrou na solidez do eixo franco-alemão. Se as democracias estatais estivessem dependentes de unanimidade, paralisariam nas suas decisões. Sendo a UE um sistema político em construção, quiçá culminando num modelo federal, se quisermos, adota já a maioria qualificada para decidir em muitas áreas, mas não ainda em todas, como neste caso. Trata-se, afinal, de uma concessão de soberania à UE feita pelos Estados, como processo voluntário, e assim também ele dependente das vicissitudes das democracias nacionais. E é também esta idiossincrasia da UE que torna este momento num dos históricos da integração!

* Licenciada em Jornalismo, mestre em História Contemporânea e doutora em Estudos Europeus

IN "VISÃO"
24/07/20

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