20/06/2020

LOURENÇO PEREIRA COUTINHO

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Joacine, Cotrim, e Ventura: 
quanto vale um deputado único?

Nas eleições de outubro de 2019, três partidos elegeram apenas um deputado à Assembleia da República. Tal é inédito, pois o desenho dos círculos eleitorais beneficia os maiores partidos e dificulta a entrada de outsiders. Desde 1976, e até 2019, apenas 3 partidos conseguiram o feito: UDP, PSN e PAN. E todos elegerem o seu deputado pelo círculo de Lisboa.

Nos anos pos 25 de Abril, a UDP foi presença habitual na Assembleia da República. Era um partido revolucionário e marxista leninista, que tinha a Albânia maoista por modelo, uma excentricidade perigosa. Em 1976, elegeu Acácio Barreiros, que vinha dos Comités Comunistas Revolucionários Marxistas (CCRM). Ainda em 1976, a UDP reforçou a sua notoriedade com o apoio à candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho, que obteve uns assustadores 16,5% dos votos.

Entre 1979 e 1995, a UDP teve Mário Tomé como cabeça de cartaz. Este foi eleito para a AR em 1979 e 1980 e, por fim, em 1991, então integrado nas listas da CDU, numa estranha e pragmática aliança entre o maoismo e o estalinismo. Mário Tomé tinha carisma. Fez parte do movimento das forças armadas, foi oficial do COPCON, e era um dos comandantes da polícia militar no 25 de novembro de 1975, altura em que foi preso. Foi o carisma de Mário Tomé que ajudou a UDP a manter o seu lugar no parlamento, e a suplantar outros partidos de extrema esquerda – como o antes influente PCTP/MRPP, ou o persistente POUS - franja partidária onde a competição era renhida. Mas, à medida que os anos do PREC iam ficando para trás, o protagonismo da UDP foi-se esbatendo, e o partido definhou até ao momento em que ajudou a fundar o Bloco de Esquerda, onde depois se diluiu.

Em 1991, foi a vez do Partido de Solidariedade Nacional (PSN) eleger o seu deputado único. Este foi o professor universitário Manuel Sérgio, que praticou um “populismo light” em defesa das causas dos reformados. A aventura do PSN foi, porém, sol de pouca dura. A causa dos reformados é sectorial, e o discurso de Manuel Sérgio era tudo menos empolgante. O poder de sedução junto do seu eleitorado foi-se perdendo, e o PSN eclipsou-se sem deixar história.

Entre 1995 e 2015, nenhum partido voltou a eleger apenas um deputado (em 1999, o Bloco de Esquerda elegeu 2). Nas legislativas de 2015, o PAN elegeu André Silva, engenheiro civil, que se tornou o seu deputado único até 2019. O PAN foi fundado em 2011 como Partido dos Animais e Natureza. Depois, deu-se conta da necessidade de juntar uma nota de humanismo, e mudou o nome para Pessoas-Animais-Natureza. Apesar da André Silva não ter jeito, carisma ou conteúdo, o partido cresceu para 4 deputados em 2019, sobretudo por conta do eleitorado urbano.

Por fim, três partidos elegeram deputados únicos em 2019. Com as suas possibilidades de intervenção parlamentar limitadas, os deputados únicos acabam por procurar outras vias para se fazerem notar. A princípio, Joacine Katar Moreira - um erro de casting que, graças à absurda forma de escolha de deputados do Livre, conseguiu sobrepor-se à escolha de Rui Tavares, o candidato óbvio do partido - deu muito que falar. Nos últimos tempos, após a desvinculação do Livre, a deputada pura e simplesmente desapareceu do espaço público. Protegida pelo conveniente escudo do anti-racismo, Joacine está como sonhou: não tem de prestar contas a ninguém, muito menos ao seu eleitorado, e pode continuar a tentar disfarçar a sua irrelevância política, agora com o argumento das limitações de um deputado não inscrito.

O deputado único da Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo, tem mantido um perfil discreto. Como não está a alinhar no jogo populista, não tem tanto tempo de antena quanto Joacine ou Ventura. Durante o confinamento, Cotrim Figueiredo teve, contudo, mais oportunidades para se fazer notar. Foi o que aconteceu em recentes aparições televisivas, e na sua intervenção no 25 de abril. A Iniciativa Liberal ficou a ganhar com a substituição de Carlos Guimarães Pinto por Cotrim de Figueiredo, que alia uma postura sóbria a um discurso estruturado.

Já André Ventura esteve como peixe na água como deputado único até ao início do confinamento: as suas intervenções geravam soundbites, mantinha uma coluna num jornal, e discutia futebol na televisão. Era o caldo perfeito para o seu populismo demagógico. Mas o confinamento retirou-lhe o palco mediático, sem o qual Ventura não consegue viver. Em desespero, sobretudo porque as presidenciais estão à porta, tem protagonizado um espetáculo patético: demitiu-se por “culpa” de uma oposição invisível; promoveu abaixo assinados contra as cerimónias do 25 de abril; e entrou num “bate bola” com Ricardo Quaresma, que acabou por custar-lhe o lugar de comentador futebolístico.

Ser deputado único não é tarefa fácil, e são poucos os que conseguem vingar. Dos que foram eleitos em outubro passado, apenas um tem resistido às tentações do mediatismo oportunista e da demagogia oca. Só por isto, João Cotrim de Figueiredo merece ser seguido com mais atenção.

IN  "EXPRESSO"
19/06/20

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