29/06/2020

ANA RITA RAMOS

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Pode haver perfeição 
na hora de morrer

Num mundo intoxicado pela sua própria tristeza, em que por várias razões penetramos o território do sofrimento, Suzanne Hoylaerts dá-nos uma lição magistral: que a fecundidade ou a inutilidade da vida está nas nossas mãos. E que o nascimento e a morte são muito parecidos. Podem ser momentos sagrados e misteriosos

Há histórias que, para serem descritas adequadamente, precisavam de 400 páginas. Pode um gesto lançar sobre nós um laço de amor que parece libertar os defeitos de grande parte da humanidade?

Encontro em Suzanne Hoylaerts, uma belga de 90 anos cuja história se tornou viral, uma perfeição que não alcanço verdadeiramente e me faz manter a fé, ainda que precária, na nossa espécie.

Não é fácil escrever sobre ela, e por isso tenho adiado esta crónica. Quando soube da sua história, não fui capaz de interpretar o que estava a sentir, nem de formular uma única palavra.

Aconteceu logo no início da pandemia, a 20 de março, quando a linguagem do medo tinha sido corrompida por excesso de uso. Suzanne foi às urgências de um hospital da sua área de residência, no Lubbeek, na região da Flandres. As suas queixas eram suspeitas: falta de apetite e dificuldades respiratórias. Indicações mais do que suficientes para ser submetida ao teste da Covid 19.

Apesar de ter cumprido à risca as indicações das autoridades para se proteger da pandemia, o resultado veio positivo. A sua idade avançada não ajudou. Muito menos a pneumonia contraída no ano anterior e que a deixou fragilizada ao nível das vias respiratórias.

Antes de ser hospitalizada, Suzanne despediu-se da filha, com uma serenidade espantosa. Vendo-a prestes a desabar em lágrimas, disse-lhe para não chorar, pois tinha feito tudo o que estava ao seu alcance para a defender do vírus. O resto não estaria nas suas mãos.

Após o internamento, o seu estado agravou-se rapidamente. Sem nunca ter perdido a lucidez, Suzanne foi informada pelos médicos que seria submetida a respiração assistida. É então que a sua atitude deixa a equipa médica sem palavras. Firme, mas sem nunca abandonar a doçura que sempre a caracterizou, diz-lhes que guardem o ventilador para os doentes mais novos, porque ela já tinha vivido uma vida suficientemente boa.

Suzanne, no auge da velhice, mostrou o seu estado superior de dignidade. Ela deu sentido ao seu fim, com um brilho de luz radiante. Um sinal definitivo de cumplicidade incondicional por um outro ser humano, alguém que não se conhece. Ouço esta história e sinto que estamos perto uns dos outros.

Que podemos amar um desconhecido, salvando-lhe a vida. E fico com a impressão de que é mais fácil encontrar a semelhança do que descobrir a diferença, num tempo com tantas divergências extremadas. A decisão de Suzanne escancarou uma porta por onde entra a esperança do mundo inteiro.

Foi assim, apenas dois dias depois de ter dado entrada no hospital, que Suzanne abandonou este mundo. Levada pelas asas de uma generosidade sem paralelo. Sem capa, nem espada, ela é uma das heroínas da era Covid 19.

Sou só eu que descubro perfeição na forma como esta senhora decidiu terminar a sua vida? Num mundo intoxicado pela sua própria tristeza, em que por várias razões penetramos o território do sofrimento, Suzanne Hoylaerts dá-nos uma lição magistral: que a fecundidade ou a inutilidade da vida está nas nossas mãos. E que o nascimento e a morte são muito parecidos. Podem ser momentos sagrados e misteriosos.

A morte, já sabemos, é uma curva no caminho. Enquanto eu viver, Suzanne Hoylaerts existirá em mim, e imaginá-la-ei a partir com um sorriso nos lábios. Isso é bonito. De facto, existimos enquanto alguém nos recorda. Seja como for, o mundo seria melhor se todos os mortos fossem enterrados a sorrir.

* Empreendedora e storyteller

IN "VISÃO"
24/06/20
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