19/06/2020

BEATRIZ GOMES DIAS

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Por um memorial
 de homenagem
 às pessoas escravizadas

Já é tempo de Portugal olhar de frente para o seu passado não tão glorioso e encará-lo de forma mais abrangente, justa e verdadeira.

“Podemos dizer que devemos aos acontecimentos ocorridos neste mesmo espaço o que somos hoje e o que fomos sendo desde o século XV. Aqui se misturaram gentes, culturas e produtos vindos por terra ou trazidos por naus e caravelas dos lugares mais longínquos que fomos descobrindo. O nosso cosmopolitismo, para não dizer o nosso universalismo, começou aqui.”

Estas palavras foram proferidas em 2016 no Terreiro do Paço, em Lisboa, pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, durante uma cerimónia oficial de comemoração do Dia de Portugal. Longe de constituir um caso isolado, o ideário subjacente a este discurso encontra-se profundamente enraizado na sociedade portuguesa, constituindo uma pedra angular da identidade nacional.

A narrativa hegemónica sobre a História nacional alimenta-se ainda hoje da exaltação quase uníssona dos chamados “Descobrimentos” enquanto epopeia universalista e até humanista, que promove Portugal como o pioneiro da globalização e o campeão da miscigenação e do encontro de culturas. Uma gesta gravada para a posteridade em incontáveis monumentos espalhados um pouco por todo o país, que asseguram uma ubíqua memorialização deste passado, mas também presente nos discursos políticos e institucionais, na comunicação social, nos manuais escolares, nos guias turísticos, em inúmeros eventos culturais, na toponímia, nos nomes e marcas comerciais, nas conversas de café, à mesa de jantar.

A construção do discurso histórico sobre a aventura imperial portuguesa que teve início no século XV tem-se esforçado, com assinalável sucesso, em embrulhar esse passado num manto de excecionalidade e benignidade. O “modo português de estar no mundo” e os “brandos costumes” são o garante desta história feita de descobertas, encontros e “misturas de gentes, culturas e produtos”, mas nunca de violência, subjugação e escravização. O lusotropicalismo está vivo e de boa saúde, seja na sua versão original, seja reciclado nas novas marcas da interculturalidade e da lusofonia.

Confrontar e superar esta narrativa eurocêntrica, parcial e enviesada da História é uma tarefa por cumprir, apesar dos persistentes esforços de alguns setores da sociedade, sobretudo ligados ao ativismo e às instituições académicas. Existe uma inabalável devoção a um passado glorioso que não admite contraditório. Aos seus críticos responde com acusações de anacronismo e ideologização, precisamente dois dos seus próprios elementos constitutivos. Nesta narrativa única, a escravização das africanas e africanos são uma gritante ausência ou, na melhor das hipóteses, um dano colateral relegado para as notas de rodapé da História de Portugal.

Essa é uma das razões pelas quais um memorial dedicado às pessoas escravizadas é tão urgente. Já é tempo de Portugal olhar de frente para o seu passado não tão glorioso e encará-lo de forma mais abrangente, justa e verdadeira. É altura de combatermos e denunciarmos o negacionismo histórico e o monopólio da memória que tem silenciado a história de tantas pessoas, tocadas pelo “universalismo” português.

Um memorial do passado, do presente e do futuro
Em 2017, a Djass – Associação de Afrodescendentes apresentou ao Orçamento Participativo de Lisboa uma proposta de criação de um memorial de homenagem às pessoas escravizadas pelo Império Português. O projeto foi um dos mais votados e acabou por ser um dos vencedores desta iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, que o incluiu no seu orçamento de 2018. O memorial vai ser uma realidade.

O objetivo principal do memorial é o de prestar homenagem aos milhões de pessoas – na sua maioria, africanas – escravizadas por Portugal entre os séculos XV e XIX. É um tributo necessário para evocar publicamente a sua memória e para romper o silêncio sobre este violento e longo capítulo da história do país.

A proposta surgiu da sociedade civil por demissão do Estado. É notória a resistência do Estado português em reconhecer o comércio de pessoas escravizadas como parte central do seu passado e os seus legados históricos, designadamente o racismo institucional, como parte do seu presente.

É forçoso admitirmos que a construção e manutenção do império se fizeram por via de uma brutal violência e opressão exercidas contra os povos dos territórios ocupados. Há que reconhecer que a celebrada grandeza e a riqueza geradas pela expansão marítima e depois pela ocupação mais efetiva dos territórios descobertos (poucos) ou invadidos (a esmagadora maioria) assentou na exploração e na escravização de milhões de africanas e africanos.

Não se trata de promover uma autoflagelação nacional, nem de exumar os fantasmas do passado para expiação dos nossos pecados históricos. Trata-se antes de empreendermos, enquanto comunidade, um ato coletivo de reconhecimento e reparação.

Reconhecimento do papel central que Portugal desempenhou nesta brutal empresa de violência e desumanização. Reconhecimento da resistência e da luta das africanas e africanos contra essa submissão. Reconhecimento da secular presença negra e africana em Portugal, em particular na cidade de Lisboa, e do seu contributo para a cultura, a economia, a sociedade portuguesa.

Reconhecimento das continuidades históricas que fizeram com que à escravatura tivessem sucedido novas formas de opressão, do trabalho forçado que se seguiu à sua abolição e perdurou quase até à instauração da democracia, ao racismo estrutural que permeia ainda hoje a sociedade portuguesa.

É, portanto, necessário desfiar o novelo histórico que nos leva da sanzala esclavagista ao gueto suburbano, do chicote colonial ao bastão policial, do engenho de açúcar ao estaleiro de obra, da cozinha de ontem à cozinha de hoje. Para as negras e os negros, a opressão que marcou o passado esclavagista e colonial de Portugal nunca desapareceu, apenas se reconfigurou e atualizou.

É por isso que este memorial será não só uma homenagem às vítimas e resistentes do passado, mas também às vítimas e resistentes dos dias de hoje.

Àqueles que foram empurrados para as margens das nossas cidades, transformadas em territórios de exceção, onde a violência policial e a exclusão social também têm morada, mas ainda assim resistem no seio de comunidades vivas e solidárias.

Aos negros e às negras que, tal como os “indígenas” do passado colonial, são tratados como cidadãos de segunda no seu país, sendo-lhes negada a nacionalidade portuguesa e os direitos de cidadania por uma lei injusta e racista, e que ainda assim resistem.

Àqueles que continuam a ser invariavelmente relegados para a condição do “outro”, o “estrangeiro”, o “imigrante”, aquele que não pertence ao tecido social nacional, a este país que ainda não reconhece a sua diversidade étnico-racial.

Aos que ocupam profissões menos remuneradas e valorizadas, aos que habitam casas precárias e territórios segregados, aos que viram as suas casas demolidas, aos que são discriminados no acesso à educação, à saúde, ao emprego, aos que estão ausentes ou são invisibilizados em praticamente todas as esferas de poder. E que, contudo, resistem.

Este memorial é um resgate da nossa história, evocada para despertar a memória coletiva do país e confrontar as narrativas que sempre a silenciaram. Queremos ocupar o espaço público com a nossa memória, bem no centro da cidade de Lisboa, a “capital do Império” que oprimiu tantos dos nossos antepassados.

Queremos um monumento que estimule, envolva, interpele, congregue, emocione, ensine. Que represente uma convocatória à reflexão sobre quem fomos, quem somos e quem queremos ser, constituindo um contributo para a redefinição das políticas de memória, a criação de espaços museológicos dedicados à escravatura e ao colonialismo português e a descolonização dos já existentes.

Só assim poderemos superar os legados nocivos do passado, garantir uma efetiva igualdade de direitos e construir uma sociedade onde não haja lugar para a discriminação contra as negras e os negros.

IN "PÚBLICO"
16/06/20
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