12/05/2020

ODETE SEVERINO SOARES

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Missão (im)possível: 
Direitos da Criança 
na União Europeia

As medidas de combate à pandemia da covid-19 estão a colocar sérias ameaças à segurança e bem-estar de centenas de milhões de crianças em todo o mundo, principalmente aquelas em situação mais vulnerável, levando mesmo o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, e a própria UNICEF a alertar para o perigo desta crise sanitária se transformar numa crise global dos direitos da criança, caso os países não atuem de imediato com uma agenda global coordenada

O próprio Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, no seu comunicado de 8 de abril, refere que os impactos socioeconómicos desta crise sanitária e as medidas de mitigação adotadas pelos governos podem ser potencialmente catastróficos para milhões de crianças, recomendando aos governos a implementação imediata de 11 recomendações nas áreas da proteção, educação e ensino à distância e acesso à informação sobre a pandemia em linguagem acessível, de modo a fortalecer o direito à participação das crianças.

Sabemos que nos momentos de crise as crianças sofrem de forma desproporcional. Esta pandemia da Covid-19 não é diferente. A Europa tem sido a região mais afetada por esta crise sanitária, mais de um milhão de casos, cujo impacto socioeconómico completo ainda se desconhece, prevendo-se que as crianças mais vulneráveis sejam as mais atingidas. Muitas já vivem na pobreza. Em 2018, 25 milhões de crianças abaixo dos 18 anos, uma em cada quatro, estavam em risco de pobreza e exclusão social na União Europeia (UE).

Investir no futuro económico e social da UE é crucial neste momento, como também é crucial investir no bem-estar de todas as crianças na Europa, dependendo apenas da vontade política dos Estados-membros e das instituições Europeias colocar as necessidades das crianças no centro das obrigações políticas e não apenas uma possível escolha política deixada ao critério de cada Estado-membro. Não fazê-lo seria fatal!

Convém relembrar que o bem-estar das crianças é um conceito que vai para além da luta contra pobreza infantil. Engloba outras dimensões, como a saúde, educação, apoio familiar, proteção e a capacidade das crianças participarem nas decisões que as afetam. Um nível de vida adequado é um pré-requisito para o desenvolvimento equilibrado da criança a nível físico, mental, moral e social.

Pode parecer uma missão impossível dado o contexto que se vive atualmente na UE, onde os Estados-membros estão cada vez mais virados para si próprios, centrando-se apenas nos seus interesses nacionais, em detrimento do interesse europeu mais lato. Pensar a longo prazo, mas agir com determinação desde já, é o que é necessário para termos uma agenda ambiciosa com verdadeiro impacto nos direitos da criança. 

Acredito que Portugal pode ter, uma vez mais, um papel determinante na concretização deste objectivo ao assumir, a partir do inicio do próximo ano, a Presidência do Conselho UE e beneficiando do novo ciclo institucional de cinco anos que se iniciou no quadro da UE. A atual presidente da Comissão Europeia já se comprometeu a apresentar muito em breve a futura estratégia da UE sobre os Direitos da Criança 2030.

Só assim os Estados Membros estarão a cumprir o compromisso global “de não deixar ninguém para trás”. Agora exige-se que se passe dos objetivos gerais consagrados no Tratado da União Europeia (artigo 3.º, nº3), na Carta dos Direitos Fundamentais da UE (artigo 24.º) e na Convenção dos Direitos da Criança, para ações concretas que promovam o bem-estar das crianças na Europa. Falamos de 100 milhões de crianças que vivem na Europa e que representam mais de 20% da população da UE.

A questão que agora se coloca será por onde começar. Procurarei deixar alguma reflexão que não é exaustiva, na esperança de que dando a conhecê-la esta possa ter algum eco junto dos decisores políticos. 

Para que os cidadãos europeus voltem a ter confiança na UE é preciso apostar numa europa mais sustentável e social. A futura Estratégia da UE 2030 que se espera que substitua a atual Estratégia Europa 2020, deve apresentar uma meta ambiciosa de eliminação da pobreza extrema até 2030 e de redução do risco de pobreza e exclusão social até 50%, abrangendo cerca de 55 milhões de pessoas, das quais 10 milhões são crianças. 

De igual forma, sete anos após adoção da Recomendação da Comissão Europeia “Investir nas Crianças para quebrar o ciclo vicioso da desigualdade”, a Comissão Europeia prepara o lançamento, em 2021, da iniciativa “Garantia para a Infância” que visa combater a pobreza infantil e assegurar que as crianças tenham acesso a serviços básicos. Podemos questionar o cumprimento daquela 

Recomendação mas os seus três pilares mantem-se atuais e adequados ao contexto atual, ao apelar ao desenvolvimento de estratégias integradas no acesso a recursos adequados para reduzir a pobreza e as carências materiais, no acesso a serviços de qualidade economicamente comportáveis e no apoio ao direito das crianças à participação.

Para que seja um instrumento estratégico e sustentável de combate à pobreza infantil na UE, o próximo Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027, com adopção prevista para junho deste ano, deve prever recursos financeiros para a concretização da “Garantia para a Infância”. O que significa os Estados-membros alinharem as respectivas prioridades nacionais dos Programas Operacionais, já em preparação até final de 2020, para assegurar a sua efetiva implementação, sob pena daquela não passar de um conjunto de boas intenções.

A este propósito, a proposta do Parlamento Europeu, já apontou o caminho, apostando num reforço do novo Fundo Social Europeu Mais (FSE+), prevendo uma dotação específica de 5.9 mil milhões de EUR (5%) dos respetivos recursos à execução da “Garantia para a Infância”. Cabe agora aos Estados-membros mostrarem que querem fazer este caminho. Isto significa que se comprometem a garantir às crianças de toda a Europa, cuidados de saúde gratuitos, educação gratuita, creches e educação pré-escolar gratuitas, habitação decente e nutrição adequada como parte de uma garantia para a infância.

Para que todas as crianças possam beneficiar de soluções efetivas na luta contra a pobreza infantil e na promoção do seu bem-estar precisamos de informação eficaz e imparcial da verdadeira situação das crianças na UE o que só acontecerá se os Estados-membros alinharem os programas anuais de reforma do semestre europeu com a “Garantia para a Infância” e desenvolverem indicadores eficazes para o painel de avaliação social do Pilar Europeu dos Direitos Sociais.

Neste quadro de desafios, a UE precisa urgentemente de um entendimento comum em relação à futura Estratégia para os Direitos da Criança com um horizonte 2030. Os últimos vinte anos podem constituir um capital importante daquilo que o futuro nos reserva e importa tirar lições da avaliação dos instrumentos entretanto aprovados como o Programa da UE para os Direitos da Criança de 2011 e as Diretrizes da UE para a promoção e proteção dos direitos das crianças de 2017. 

Os próximos vinte anos vão certamente acelerar muitas das tendências a que estamos assistir, devendo a UE prosseguir uma agenda que promova, proteja e respeite os direitos da criança em todas políticas da UE, com um Plano de Ação ambicioso, procurando obter resultados concretos, associados a um conjunto de prioridades, com medidas e ferramentas e fornecendo os meios legislativos e financeiros para a sua implementação.

A UE deverá responder a este desafio definindo as suas prioridades que passam por: investir na melhoria dos serviços públicos dirigidos às crianças em áreas como o acolhimento, a educação e a saúde; proteger os direitos de maternidade e paternidade; combater a pobreza infantil, fixando objectivos de redução para metade na Agenda da UE 2030; criar uma “Garantia para a Infância”, dotada de recursos financeiros adequados; investir na promoção e proteção da saúde mental de crianças; garantir o acesso equitativo e de qualidade à educação; investir na educação pré-escolar; investir numa justiça adatada às crianças antes, durante e depois do processo judicial, respeitando o seu direito de ser ouvida; criar uma abordagem intersectorial de proteção das crianças em situação mais vulneráveis; promover a desinstitucionalização criando respostas na comunidade; eliminar todas as formas de violência; proteger a segurança on-line das crianças; e promover o direito à participação da criança, criando verdadeiros mecanismos de participação.

A mensagem é clara: ter uma agenda da UE para os direitos da criança com um plano de ação ambicioso para os próximos dez anos não é uma missão impossível. Pelo contrário, é possível, dependendo apenas de colocar o bem-estar das crianças no topo da agenda política da UE, assumindo os Estados-membros e as Instituições Europeias esse compromisso presente e futuro.

*Perita em Direitos Humanos e Direitos da Criança

IN "EXPRESSO"
08/05/20
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