27/05/2020

MIGUEL SOEIRO

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Intermitência e 
a miséria na cultura

A partir de 1 de junho, dizem as notícias, os aviões já poderão voar cheios. “E os teatros, senhores?! Não conheço melhor espaço para voar do que os teatros...”, perguntava António Capelo, ironicamente, nas redes sociais.

O debate não será tanto sobre as regras sanitárias para o desconfinamento, mas mais sobre a brutal desigualdade com que se trata as diferentes áreas de atividade. No topo, a banca, impune como sempre. No sistema financeiro, a crise é sempre uma oportunidade. A economia do país pode estar paralisada, com centenas de milhares de pessoas sem rendimento nem proteção - mas o Novo Banco consegue a proeza de, na mesma semana, arrebatar a Mário Centeno mais 850 milhões dos contribuintes, sem qualquer auditoria, e tornar público o aumento de 50% da remuneração a administradores. Um outro exemplo em que acaba de haver apoios: a comunicação social. Os critérios, em termos de serviço público e preservação do emprego merecem crítica, excluíram projetos não comerciais, não distinguiram informação das outras áreas de atividade dos grupos económicos, não exigiram nenhuma contrapartida em termos do respeito pelos direitos laborais. O facto é que o Governo antecipou 15 milhões para os grupos de comunicação social. E para a cultura, a tal em que trabalham mais de 130 mil pessoas?

Na cultura, é uma miséria. Miséria antiga na dotação orçamental, a léguas sequer do 1%. Miséria no modo errático como o Governo, e em particular a Ministra Graça Fonseca tem gerido esta crise, dando a ideia de ter chegado à tutela como quem aterra num planeta que lhe é totalmente estranho.
Miséria de apoios de emergência que na verdade são concursos que excluem a maioria. De anúncios atabalhoados como os concertos em bola de neve para conhecidos de conhecidos que tiveram de ser cancelados perante a indignação dos músicos. Miséria das mesmas medidas propagandeadas várias vezes como se, pela multiplicação de anúncios, se conseguisse um efeito multiplicador do seu impacto real (um exemplo: o concurso da Direção Geral das Artes, com esse arrebatador valor de 1 milhão e 700 mil euros).

Miséria no modo como muitas instituições tratam os trabalhadores. A Casa da Música, e também Serralves, foram porventura os exemplos mais visíveis. Continuadas e antigas violações grosseiras da lei, com recurso a falsos recibos verdes, aliás generalizado no setor (é preciso insistir: ser contrato ou ser recibo não tem rigorosamente nada a ver com o horário, a frequência nem a exclusividade!). Um desprezo chocante por parte das Administrações: canceladas as atividades, a muitos dos trabalhadores quis-se pagar zero, descartando-os pura e simplesmente, pressionando-os ainda a renunciarem “voluntariamente” aos seus direitos. Tudo isto em instituições que vivem do dinheiro público (10 milhões a cada ano para a Casa da Música, por exemplo), mas que são geridas como fundações privadas, com as mais ignóbeis práticas patronais. Tudo isto, insista-se, em instituições às quais o Estado pode exigir outras práticas (laborais, por via da ACT; artísticas e de gestão, porque financia e porque tem presença no Conselho de Administração). E não foi apenas nestas que isto aconteceu: quantos assistentes de sala dos teatros municipais – do Porto incluído - ficam sem receber nada em abril, maio, junho e julho pelas atividades canceladas? E técnicos de som, intermediados por outras empresas? Quantos tiveram atividades canceladas e não pagas pelos municípios?

Miséria, também, no montante do apoios extraordinário que o Governo decidiu destinar a esta área, ainda mais se comparados com outros. Com um extra. Algumas das verbas anunciadas, como a que hoje o Primeiro-Ministro divulgou, são na prática um desvio para as autarquias de um montante que estava já reservado para a Cultura mas cujo destino inicial, o programa “Cultura para Todos”, foi cancelado (e que até teria uma verba maior).

Miséria, finalmente, nos próprios valores dos apoios dirigidos aos trabalhadores intermitentes. Para os que estavam no primeiro ano do regime dos recibos verdes, o apoio situa-se entre 93€ e 219,40€ por mês. Miséria. Para os que fazem descontos há mais tempo, o valor pode ir no máximo aos 635€, mas na esmagadora maioria dos casos ficará abaixo do limiar da pobreza, entre 219€ e 438€ mensais. Miséria. Não admira, como mostra hoje uma longa reportagem de um outro jornal, que de repente nos tenhamos confrontado com a condição proletária da generalidade dos “invisíveis da cultura e do audiovisual” e com a fragilidade da sua proteção social, o que faz aliás com que haja centenas que dependem agora de cabazes distribuídos por redes de solidariedade entretanto postas no terreno.

Ouça-se o alerta que tem sido lançado por tantos e tantas. É preciso mexer a sério na cultura política que temos sobre a política cultural. É preciso mudar a cultura laboral miserável que existe na cultura. É preciso transformar a desproteção social que é consequência das duas anteriores.

Digo rápido três urgências. A primeira: um apoio a fundo perdido que tenha em conta o que foi cancelado e reagendado e que seja distribuído pelos trabalhadores. A segunda: substituir a lógica do recibo pelo princípio do contrato (resolvia tanta coisa!). A terceira: um estatuto de intermitência (aplicável a trabalhadores por conta de outrem e a trabalhadores independentes, sem distinção) que assuma de uma vez por todas que, num setor com estas características, para garantir proteção social robusta, a relação entre contribuições, salários e rendimentos será muito provavelmente deficitária do ponto de vista da Segurança Social, mas pode ser financiada pelo Orçamento do Estado como uma política de investimento cultural. Sim, financiar com o Orçamento do Estado a Segurança Social para os intermitentes é uma medida ousada, mas é mesmo parte de uma política cultural se não acharmos que se vive de ar e vento, de palmas e de palmadinhas nas costas. Se ao menos isso aprendêssemos com a crise e a pandemia, já seria um pequeno grande passo.

* Sociólogo

IN "EXPRESSO"
22/05/20

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