28/04/2020

MARIA LUÍSA CABRAL

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Celebremos o livro 
seiscentos anos depois

O livro é motivo de celebração. As artes sobre as quais se moldou, as pessoas que convoca, o autor como máximo responsável. Uma construção que leva mais de quinhentos anos, sem esmorecimento.

O livro e as bibliotecas fazem-se com pessoas, dirigem-se às pessoas. Não são virtuais, objecto e espaço bem reais a ganharem sempre novas dimensões porque existem para as pessoas. Como as aulas sem o contacto interpessoal perdem grande parte do seu poder, também os livros de papel construídos não prescindem das pessoas e estas não os conseguem substituir apenas pela transmissão fria e impessoal dos seus textos abdicando do contacto que sublinha toda a diferença. Já não subo àquele patamar de uma percepção bem mais fina e subtil em que o tacto e o cheiro se tornam absolutamente insubstituíveis. Não vou invocar o pormenor da tinta ou do tipo de letra, da textura do papel, à forma como ele foi dobrado e cortado. Ou à encadernação manual e não mecânica. O que aqui se esquematiza são as artes manuais que permitiram construir o livro como o conhecemos desde os idos de 1450. Desconhecendo toda a história do livro, o seu rigor e exigência, podemos chegar ao absurdo de transmitir a ideia de que o livro é obra de um estalar de dedos. Não foi. Mesmo se a produção actual tende a um afinamento que torna a edição mais económica, a uma maior divulgação, não nos será permitido apagar o passado e todo o processo de construção, com tanto de laborioso como de belo. As outras artes manuais estão em condições idênticas, os resultados em massa de hoje satisfazem a maioria de os utilizadores, então para quê a preocupação na preservação desta ou daquela outra arte, de produção lenta e repleta de protocolos, logo cara? Pergunta difícil cuja resposta traz a marca da nossa civilização, onde chegámos, como nos olhamos e respeitamos. A diversidade que age como factor de igualdade, a capacidade de aprender e respeitar.

Tal como hoje mercê da profunda crise sanitária que nos corrói, os estudantes têm aulas em ambiente virtual que não satisfaz plenamente quer os alunos quer os professores e todos ambicionam pelo dia em que se reunirão de novo no espaço físico da aula, também os livros em papel não dispensarão os seus leitores que, para além da leitura, se entreterão a riscar, ou dobrar os cantos, a folhear de trás para a frente à procura daquela frase ou daquela descrição que mais lhes prendeu a atenção. Os livros quando alinhados na estante de uma qualquer biblioteca ganham o poderoso efeito de induzirem à descoberta, de conduzirem os leitores a estabelecerem relações inesperadas. Este poder de os livros não é substituível pela pesquisa online, pelo pedido de leitura online. Que os bibliotecários não adoptem uma solução de emergência como a solução óptima, suprema ilusão. O futuro não pode negar a condição humana inerente na leitura, na consulta, na ida à biblioteca. Umberto Eco descreveu com mestria esta proximidade com o livro, fosse recordando as bibliotecas americanas ou as da sua Itália. Vaguear entre estantes carregadas de livros em papel, perceber que este livro agora nas mãos tem uma afinidade inegável com aqueloutro que folheámos há momentos atrás, largá-lo para o repegar um pouco mais tarde, faz todo o sentido. Verdadeiramente “fazer da biblioteca uma aventura”, celebrar o objecto tridimensional no espaço concreto e real da biblioteca, entre pessoas, sempre mais pessoas. A forma mais bonita de celebrar os quase 600 anos do livro impresso.

* Bibliotecária aposentada

IN "ESQUERDA"
24/04/20

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