05/04/2020

ADELINO FORTUNATO

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O coronavírus e a 
“alegria de viver”

Ninguém esperava que a crise se acelerasse por via de uma pandemia com efeitos na atividade económica. O encerramento de empresas, o colapso da procura e a restrição de atividades vão desencadear uma contração drástica.

Há 102 anos a Pneumónica matava mais de 50 milhões de pessoas em todo o mundo. Ao pesadelo da Grande Guerra adicionava-se este novo elemento depressivo entre 1918 e 1920 (ver, a este propósito, o excelente documentário de Fernando Rosas em https://www.rtp.pt/play/p1683/e184201/historia-a-historia (link is external)). Vencidas as duas catástrofes, a humanidade respirava de alívio e entrava na euforia dos “loucos anos 20”, ou na “alegria de viver”. De curta duração. O desemprego, a ascensão do fascismo e a crise de 1929 encarregar-se-iam de mostrar os limites daquele desanuviamento.

O clima de confiança só voltaria após a tragédia da Segunda Guerra Mundial. Apesar da Guerra Fria, a humanidade entrava em nova onda de esperança, ao ponto de se sentir imune às crises do passado. Os sistemas de saúde e a medicina progrediam fazendo com que a esperança de vida aumentasse, a extrema-direita passava a ser uma espécie de parêntesis da história contemporânea e as crises económicas pareciam fortemente atenuadas.

Um bom exemplo disto foi o prémio Nobel Robert Lucas Jr que, em 2003, vaticinava o fim das crises ou da oscilação longa entre períodos de depressão e desemprego massivo e períodos de expansão, que dominaram as atenções na sequência da crise de 1929 e do debate sobre “estagnação secular”. A narrativa dominante passava a ser a de que o ciclo está sob controlo, os agentes económicos têm “expectativas racionais” e a política económica deve concentrar-se na desregulação do mercado do trabalho e financeiro e na redução dos apoios aos desempregados para esses mercados funcionarem eficientemente.

Os tempos que vivemos são a antítese desta visão das coisas. O que só prova que a História não pára. É certo que outros flagelos, entretanto, se disseminaram, como o Ébola ou a Sida. Mas já nos tínhamos esquecido da fragilidade da existência humana, que também atinge as sociedades mais ricas e tecnologicamente sofisticadas. O coronavírus, por exemplo, expande-se rapidamente, pelo menos nesta fase, nas zonas mais desenvolvidas do mundo, criando um clima que muitos pensavam ser típico das áreas pobres de África, Ásia e América Latina.

Um pouco por todo o mundo, o descontentamento popular com a globalização financeira, a austeridade, a insegurança, as desigualdades e o trabalho precário ajudaram a extrema-direita a voltar e a penúria instalou-se nos países desenvolvidos com a crise de 2007. O desmantelamento do Estado Social e as políticas de austeridade só serviram para alimentar a expectativa de que uma nova crise estava na forja. Já ninguém punha em causa a sua eclosão, era só uma questão de tempo.

Ninguém esperava, no entanto, que essa crise se acelerasse por via de uma pandemia com efeitos na atividade económica. O encerramento de empresas, o colapso da procura e a restrição de atividades vão desencadear uma contração drástica. Os governos têm de nacionalizar empresas em setores fundamentais, assegurar a normalidade da distribuição de alimentos e medicamentos, proibir os despedimentos e os despejos, evitar a crise de liquidez das pequenas empresas, subsidiar salários, assegurar o acesso aos serviços públicos e pôr a banca ao serviço da economia.

Em países como Portugal o défice das contas públicas irá disparar num contexto de elevada dívida externa pública e privada. Mesmo que o custo da dívida não aumente, as autoridades europeias devem construir instrumentos de intervenção, seja por criação monetária direta do BCE para subsidiar pequenas empresas, trabalhadores ou serviços públicos em rutura, seja emitindo Eurobonds ou dívida solidária não sujeita a condicionalismo de austeridade, seja comprando dívida no mercado primário.

A recente reunião do Conselho Europeu mostrou a trágica divisão de perspetivas que atinge os seus membros, pois nenhuma destas alternativas foi adotada, sendo que a primeira nem foi considerada. A vantagem da emissão monetária seria a de poupar os estados-membros que dela carecem à contração de dívida, articulando política monetária e política orçamental. Quanto aos Eurobonds, trata-se apenas de ter em conta que o vírus atinge todos os países da União Europeia, logo todos devem partilhar o risco de uma resposta que a todos deveria interessar.

Persistindo este impasse, acompanhado do cinismo dos governos da Alemanha, da Áustria, da Finlândia ou da Holanda, os países mais atingidos por esta crise deveriam encarar a possibilidade de algum entendimento conjunto em torno de medidas que, ainda que possam violar expressamente regras e procedimentos comunitários, se justifiquem à luz dos seus interesses. E devem preparar-se também para reintroduzir no debate a possibilidade da imposição de ações unilaterais de reestruturação das dívidas face aos credores institucionais.

Se isto continuar a não ser feito, teremos insatisfação a crescer e um potencial de destruição pior que o da crise anterior. Ao sofrimento das mortes seguir-se-ão ajustamentos económicos ainda mais dolorosos que aqueles que conhecemos durante a presença da Troika. Será mesmo a grande oportunidade para o capitalismo impor todo o programa de transformações estruturais ainda não plenamente implantadas e de aumentar a exploração das massas, porventura nalguns casos com regimes políticos musculados. E adiaremos por muitos anos a “alegria de viver”. Ainda estamos a tempo de o evitar.

* Professor universitário

IN "ESQUERDA"
03/04/20

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